Até então mais conhecido como documentarista – codirigiu os celebrados 'Janela da alma' (2001, com Walter Carvalho) e 'Lixo extraordinário' (2010, com Lucy Walker e Karen Harley) –, Jardim queria que sua estreia na ficção histórica abordasse a formação do Brasil “até chegar àquilo que a gente é hoje.” O lado documentarista o fez chegar aos 19 últimos dias de vida de Getúlio Vargas (1882-1954), recriados no filme que estreia hoje em 200 salas do país. Decidido o tema, Jardim fiou-se no cinema propriamente dito.
“Gosto de fazer cinema. Com ator ou sem, a construção de um filme obedece a regras dramatúrgicas que me interessam. Aqueles 19 dias eram muito cinematográficos”, explica o diretor, que levou sete anos entre a concepção e o lançamento de 'Getúlio'.
A partir do famoso atentado da Rua Tonelero, em 5 de agosto de 1954 – que feriu o grande inimigo político de Vargas, o jornalista Carlos Lacerda (Alexandre Borges), e matou o major Rubens Vaz –, até o tiro no peito no Palácio do Catete, que fez Vargas “sair da vida e entrar para a história”, Jardim busca reconstituir, passo a passo, os bastidores do poder.
“A gente sempre acha que quem está no poder é quem manda. Mas a pessoa depende de outras para mandar, e essa discussão acaba sendo contemporânea”, comenta o cineasta, sem querer dar nomes aos bois. Jardim esperou um ano para que Tony Ramos estivesse disponível para encarnar o estadista – o ator o fez com fidelidade, mas também com personalidade própria.
Desvinculado dos acontecimentos passados (se é que isso é possível), o espectador pode assistir a 'Getúlio' como um bom thriller político (exemplo raro na cinematografia brasileira) misturado a boa dose de drama pessoal. Praticamente entrincheirado no Catete, Getúlio assiste, quase sempre em silêncio, à sua carreira política ruir a partir de uma série de erros que jamais assumiu. O bode expiatório é Gregório Fortunato (Thiago Justino), o Anjo Negro, chefe de sua guarda pessoal, que entrou para a história como o mandante do atentado. Em meio a isso há a traição do irmão, Benjamim Vargas (Fernando Luís), e a pressão oposicionista pela renúncia. Na intimidade, o presidente contava com o apoio da filha Alzira (Drica Moraes, a melhor interpretação do filme), seu braço direito, e as dores de cabeça provocadas pelo filho Lutero (Marcelo Médici).
Sob outro olhar, 'Getúlio' também agrada pela fidelidade à época. Filmado dentro do Catete, traz alguns preciosismos. O revólver foi o mesmo com o qual Getúlio se matou. O pijama é idêntico, qualquer visita ao museu carioca vai comprovar. Até o colchão é aquele em que o corpo foi encontrado (para filmar a cena fatídica, Tony Ramos se sentou bem no lugar onde está a mancha de sangue). O elenco, bem escolhido, deixa o protagonista brilhar onde lhe é devido. Tony Ramos usou uma roupa que o engordou 30 quilos – a preparação diária lhe consumia duas horas e 15 minutos. Michel Bercovitch, com semblante parecido ao de Tancredo Neves, teve que raspar a cabeça para saber se seria ou não aceito para interpretar o fiel escudeiro do presidente.
O maior acerto de João Jardim foi não dar respostas prontas. Não há didatismo em 'Getúlio', e o cineasta se permitiu certa liberdade. Exemplos claros disso estão na cena em que Alzira amarra os sapatos do pai (diz-se que ele não conseguia fazer isso sozinho, mas não há registro de tal imagem) e quando ela, a pessoa mais próxima a Getúlio, foi a primeira a chegar ao quarto depois do tiro fatal (na realidade, não foi Alzira quem entrou ali logo depois do suicídio). Sonhos do presidente acabam simbolizando as relações mantidas por ele, principalmente a permissividade com relação a Gregório Fortunato.
Por fim, a famosa carta-testamento, como muitos livros didáticos descrevem, é apresentada como um documento de resistência, escrita por um homem consciente de que poderia ser assassinado ou deposto a qualquer momento.
“Se fosse uma carta-testamento mesmo, como a família não teria sido avisada?”, questiona Jardim. O diretor espera que seu filme traga uma reflexão sobre o país. “O Brasil tem uma história que se repete. O que aconteceu foi há 60 anos, e pode continuar a ocorrer se não entendermos como se dão os processos de governar o país”, conclui.
Líder cercado de mistérios
Autor do romance biográfico Getúlio (Record), publicado há 10 anos, o escritor, jornalista e professor gaúcho Juremir Machado afirma que talvez nunca seja esclarecido um dos grandes mistérios sobre a trajetória do estadista gacúcho: quem teria efetivamente sido o mandante do atentado na Rua Tonelero.
“Não há uma resposta definitiva. É muito provável que tenha sido o Bejo Vargas (Benjamim, irmão de Getúlio) ou então o Lutero (filho do ex-presidente). Esse último tinha motivos, mas não personalidade para tal. Já o Bejo tinha a personalidade, mas não os motivos”, comenta.
As pesquisas de Machado se valeram de três perspectivas: documentação histórica em arquivos, jornais da época e os remanescentes, como Alcino João do Nascimento, pistoleiro contratado para o atentado, e Ingeborg ten Haeff, artista plástica alemã que se casou com Lutero durante a Segunda Guerra Mundial.
Para o autor, Gregório Fortunato se tornou bode expiatório pela fidelidade ao presidente. “Gregório aparece como um personagem sempre manipulado por alguém. Fiel a Getúlio, não era uma pessoa com ideias próprias. Acabou realmente com poder, talvez tenha se corrompido um pouco, mas não tinha estatuto intelectual para tomar decisão importante”, acredita.
Para Juremir Machado, o mais importante é entender como Getúlio Vargas decidiu se suicidar dentro de um palácio cheio de gente. Sobre a carta-testamento, o escritor acredita que apenas o bilhete inicial, encontrado com Getúlio ainda vivo e levado a Alzira, foi escrito pelo presidente (o texto é iniciado com “Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte”).
“Maciel (Filho), o escriba dele, redigiu primeiro um discurso que Getúlio pretendia ler em 12 de agosto de 1954, na inauguração da Mannesmann, em Minas. Queria um texto forte, mostrando que o presidente era capaz de qualquer sacrifício. Quando foi se aproximando o final de agosto, Getúlio, muito preocupado, pediu-lhe que aquele discurso fosse transformado em outro. O bilhete e o discurso fizeram a carta, que tem diferentes versões. Uma foi encontrada na mesinha de cabeceira dele, a outra num cofre. São diferentes, mas a essência é a mesma”, afirma Juremir.
Ambígua, aquela carta serviria para qualquer situação. “Mas só o bilhete é dele. ‘Saio da vida para entrar para a história’ é obra do Maciel com o espírito do Getúlio”, conclui o escritor.
Assista ao trailer de 'Getúlio':