Carnaval em BH começou antes de a capital ser inaugurada

Folia passou por diversas transformações ao longo do século 20. Banda Mole é exemplo de tradição duradoura

por Walter Felix 11/02/2018 08:36
Igino Bonfioli/Arquivo EM
(foto: Igino Bonfioli/Arquivo EM)

Há quem diga que o carnaval de Belo Horizonte só começou efetivamente nos últimos anos, com a multiplicação dos blocos de rua e o crescimento da adesão popular. Quem faz tal afirmação talvez não saiba que a cidade tem uma longa história carnavalesca e, provavelmente, se surpreenderia com o fato de que a cidade, que há poucos anos tinha uma imagem tão desassociada da folia, teve seu primeiro carnaval de rua antes mesmo de sua inauguração.

Profissionais empenhados na construção da nova capital formaram os Diabos de Luneta e improvisaram a festa no início de 1897. A cidade só seria inaugurada em dezembro daquele ano. De lá pra cá, o carnaval belo-horizontino cresceu, manteve-se estagnado até o início do século 21, e só mesmo a partir de 2010 a folia passou a atingir níveis expressivos, atraindo turistas e impulsionando a economia local.

Blocos de rua se popularizaram na cidade logo no início do século 20. À época, predominava o corso, desfile de carros de luxo ornamentados e comandados por foliões devidamente fantasiados. Algumas fábricas organizavam seus próprios blocos, a exemplo da Antarctica, que levou às ruas um carro que trazia o nome da marca e com a participação de seus funcionários fantasiados de vikings.

Com a fundação do Estado de Minas, em 1928, o carnaval de BH ganharia um grande apoiador, responsável por promover alguns dos primeiros desfiles de grupos caricatos em frente à redação, no Centro. Registros da época apontam que as classes médias e baixas ocupavam diversas localidades de BH, enquanto os “grã-finos” garantiam a agitação na Rua da Bahia com joias e vestimentas mais elaboradas. Nos anos seguintes, a elite da cidade passou a se concentrar nas grandes festas promovidas em clubes fechados.

As escolas de samba também se tornariam populares entre as décadas de 1930 e 1940. Segundo dados da Belotur, a Escola de Samba Pedreira Unida, formada por moradores da Pedreira Prado Lopes, foi a primeira agremiação a desfilar em BH. Os desfiles se tornaram competitivos no fim da década de 1950, quando as escolas Inconfidência Mineira e Cidade Jardim passaram a se alternar no posto de campeã.

Mas só em 1980 os desfiles das escolas de samba e de blocos caricatos foram oficializados pela prefeitura, passando a desfilar regularmente na Avenida Afonso Pena. Na mesma época, a Belotur passou a coordenar a folia na capital, promovendo anualmente a eleição da corte real momesca, em vigor até hoje.

O tradicional desfile das escolas seguiu até 1990, quando a falta de investimentos pôs fim à folia. Em resposta, os principais grupos carnavalescos da capital desfilaram no interior mineiro, em 1991. O desfile oficial só voltaria à Afonso Pena em 2014, favorecido pela nostalgia dos moradores e pela adesão popular à festa.

TRADIÇÃO


Os blocos de rua sempre foram o forte do carnaval de Belo Horizonte. Em 1975, a festa ganharia aquela que é hoje sua mais tradicional representante. Formada por membros dissidentes do bloco Leão da Lagoinha (o mais antigo da cidade, fundado em 1947), a Banda Mole tomou conta das ruas pela primeira vez há 43 anos, apostando em irreverência e criatividade.

Helvécio “Gaiola” Trotta foi um dos 15 fundadores do grupo e hoje, aos 78 anos, ele é o presidente da República Independente da Banda Mole. O eterno folião conta que a iniciativa dele e de seus amigos buscava dar vida nova à festividade na capital mineira.

“Nos anos 1970, o carnaval quase já não existia mais em Belo Horizonte, por uma série de motivações. Em especial, pela falta de recursos financeiros, pela proibição do corso e do lança-perfume em todo o Brasil”, afirma Helvécio. Diante da pouca adesão popular, a tática foi antecipar a folia: a Banda Mole sairia às ruas uma semana antes do início do evento oficial, tradição que se mantém até hoje. Ele explica: desta forma, atrairia o belo-horizontino que ainda não tinha aproveitado o feriado para viajar.

“Em nosso primeiro ano, tivemos cerca de 200 participantes, um número bastante pequeno. Nossos desfiles não tinham carro, nem trio elétrico, a banda saía com o pé no chão. Do ano seguinte em diante, nosso público foi crescendo de uma maneira sem explicação”, relembra Helvécio.

Na década de 1980, a diretoria viu a necessidade de aderir aos caminhões motorizados para atender o público sempre crescente. De tantos foliões seguindo seus trios elétricos, a Banda Mole não poderia mais desfilar pela íngreme e estreita Rua da Bahia, seu local de passagem desde o início. A saída oferecida pela prefeitura não poderia ser outra: a boa, velha e carnavalesca Avenida Afonso Pena.

Mesmo nos anos em que o carnaval perdia força na cidade, a Banda Mole atraía multidões ao Centro de BH, chegando a reunir aproximadamente 400 mil pessoas na década de 1990. A edição mais recente da festa, no último dia 3, reuniu em três trios elétricos os blocos Havayanas Usadas e Pacato Cidadão, de BH, a Bartucada, de Diamantina, além de outros grupos e artistas locais.

OUTROS TEMPOS


Helvécio observa que os blocos atuais gozam de maiores recursos financeiros, o que possibilita equipamentos e adereços mais requintados. Ele só lamenta que, apesar do maior investimento na festa, o gosto por sair fantasiado às ruas tenha se perdido – algo que, segundo Helvécio, ainda se vê no Rio de Janeiro. “As pessoas saíam do jeito que queriam pelas ruas. Hoje, prevalecem nos blocos as fantasias padronizadas ou camisetas sugerindo algo um pouco mais interessante”, aponta.

Os mais saudosistas podem sentir nostalgia dos Bocas Brancas da Floresta ou das Domésticas do Lourdes. Entretanto, da realização desses blocos até os dias atuais, muita coisa mudou – inclusive os critérios sobre o que é divertido e o que pode ser ofensivo. Homens brancos com a pele pintada de preta, assim como a elite satirizando a classe das empregadas domésticas, certamente não seriam movimentos vistos com bons olhos na atualidade. Blocos caricatos como esses deram lugar a grupos que dialogam com os novos tempos, com maior respeito às diferenças sociais, de raça, sexo e gênero.

Helvécio revela que a Banda Mole sempre abrigou grupos minoritários, em especial a comunidade gay da cidade, desde épocas em que o preconceito era acentuado. “Os gays tinham a Banda Mole como um momento de descontração. Eles eram muito bem aceitos e tinham muito bom gosto nas fantasias apresentadas”, conta.

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