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ESPECIAL DE NATAL

Fábio Porchat: 'As pessoas não conhecem a história de Jesus'


Interpretar Jesus não é novidade na carreira do ator Fábio Porchat. Só no site de humor Porta dos Fundos ele fez esse papel várias vezes, incluindo o especial de Natal Se beber não ceie, de 2018, que faturou o prêmio Emmy. Nenhum desses Cristos gerou tanta expectativa quanto o do programa deste ano, Teocracia em vertigem, em cartaz no canal do grupo no YouTube e na plataforma Pluto TV, que acabou de chegar ao país.



“Os olhares estavam atentos ao que íamos produzir, mas no ano passado ninguém achou que teria o impacto que teve”, comenta Porchat. Em 2019,A primeira tentação de Cristo provocou debate público sobre a volta da censura no Brasil. Líderes religiosos, sentindo-se ofendidos, recorreram à Justiça para impedir a exibição, obtendo o apoio do desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a censura.

CANCELAMENTO 
Assinaturas da Netflix, que exibiu A primeira tentação..., foram canceladas. O grupo tem elogiado a plataforma, mas fato é que seu especial deixou a gigante do streaming, migrando para a Pluto TV. Além disso, a sede do Porta dos Fundos, na capital fluminense, sofreu atentado com coquetéis molotov, em dezembro do ano passado. Eduardo Cerquise, suspeito de cometer o ataque, foi preso na Rússia pela Interpol.

“(O especial) Só teve impacto porque Jesus era gay. Se não fosse, não haveria impacto algum”, critica Porchat. E avisa: em Teocracia em vertigem, ao contrário do filme do ano passado, há frases como “Deus senta” e “Eu matei Deus e mato de novo”.



“Todas essas agressões estão na boca de gente da pior espécie, estamos acostumados a ver gente maluca falando maluquice. Bolsonaro fala alguma coisa e a gente diz: 'Ah! é o Bolsonaro falando'. Não, não é o Bolsonaro falando, é um doido de pedra, meio que fomos nos acostumando. A verdade é que os malucos não vão se reconhecer naqueles cidadãos de bem”, ironiza Porchat.

A primeira tentação de Cristo sugere o relacionamento homossexual de Jesus depois de 40 dias no deserto. Em Teocracia em vertigem, a política brasileira dá o tom à história mais antiga da humanidade, apresentada em forma de documentário – da infância à crucificação de Cristo.

Personagens presentes ao julgamento que condenou Jesus repetem frases ditas por parlamentares quando o Congresso votou o impeachment de Dilma Rousseff. O próprio título do filme remete ao documentário Democracia em vertigem, de Petra Chaves, abordando aquele período da história do país. A mineira Petra, aliás, faz uma participação em Teocracia.



MISERICÓRDIA 
No “documentário fake” do Porta, o personagem de João Vicente Castro repete a frase “Que Deus tenha misericórdia desta nação”, do deputado Eduardo Cunha. Judas se diz “apóstolo decorativo”, assim como Michel Temer reclamou de ser “vice decorativo”. O apóstolo Pedro acusa Judas de participar de esquema de “rachadinha”. E por aí vai.

Como ocorre anualmente, a produção do especial de Natal do Porta dos Fundos começa em março. Mas a COVID-19 mudou esta rotina. “Monja Coen falou uma coisa interessante. Não é só a gente que está passando pela pandemia. A pandemia está passando pela gente também. Mesmo que sejamos privilegiados, com casa para morar, lugar para ficar, temos o desgoverno, pessoas morrendo. O tempo todo, a gente enfrenta um grau de ansiedade e nervosismo, mesmo que inconsciente”, diz Porchat.

O ator conta que foi difícil parar, sentar, escrever e se concentrar no roteiro. Gabriel Esteves, o redator mais antigo do Porta, apresentou a ideia do documentário para Porchat, que leu o Novo Testamento e quatro evangelistas para criar algo fiel ao texto cristão. O processo durou um mês até chegar à quarta versão, que resultou no texto final e 25 personagens.



“Fui facilitando a vida de nossos interlocutores para eles entenderem as piadas, porque, no fim das contas, descobri que as pessoas não conhecem a história de Jesus. No máximo, que Jesus foi crucificado e olhe lá. As pessoas não sabem quem foi Barrabás... Eu também não sabia, só sei porque fui lá ler, me aprofundar”, conta ele.

Horas antes de Fábio Porchat conversar com o Estado de Minas, elenco e integrantes da trupe participaram de coletiva on-line. Gregório Duvivier destacou o olhar político conferido a Jesus. “Ele era líder contestador ao regime romano, foi punido e crucificado por isso. Depois a história tentou despolitizá-lo, exatamente para que o cristianismo pudesse tomar conta. Nossa ideia não é destruir valores cristãos. Ao contrário”, pondera, citando como o livro Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan, mudou suas ideias em relação ao cristianismo.

O CEO do grupo, Christian Rôças, o Crocas, diz que o Porta é o Brasil que deu certo. “Conseguimos uma linguagem cada vez mais forte nos últimos oito anos. Houve a expansão para outros países. O especial de Natal é como se fosse o nosso super bowl”, comenta, referindo-se à final do campeonato da liga de futebol americano dos EUA.



Se 2020 foi bom, o que esperar para o futuro? Fábio Porchat acha difícil prever o humor que vem por aí, cujo ritmo, cada vez mais, é influenciado pela tecnologia. “As piadas do Joãozinho e do papagaio morreram, foram substituídas por memes, gifs, stickers. Se conto para você uma piada de duplo sentido, é meio velho, antigo. Agora, se você recebe isso no seu WhatsApp, no grupo da família, até acha meio engraçado”, compara.

Certo é que o humor acompanha a evolução da sociedade. “Assim como toda forma de arte, o humor deve estar à frente, puxando, guiando a sociedade. Por isso, vejo que o tipo de humor do Porta estava na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas e se mostra muito assertivo. Estamos tentando acompanhar evolutivamente, e não propagar preconceito, fazer aquelas velhas piadas rindo de minorias, rindo de oprimidos”, diz Porchat.

Partindo deste princípio, há um verdadeiro cabo de guerra – o humor puxa para a frente, a sociedade dá passos atrás. Fábio não tem a menor dúvida de que nesta disputa vence a arte. “Pode demorar, mas, no fim das contas, a gente vai evoluir. A sociedade de hoje é melhor do que a sociedade de 50 anos, e a de 50 anos era melhor do que aque de 100 anos atrás. No fim das contas, a gente queria evoluir a passos largos, que menos pessoas morressem, que menos pessoas sofressem. Mas a humanidade ainda está se desenvolvendo”, afirma. “Acho que a onda reacionária do mundo, que é um horror não só no Brasil, começou a retroceder. Saiu o (Donald) Trump, o (Marcelo) Crivella.”



MACHISTA
Porchat faz autocrítica, apontando os próprios erros. “Quão machista eu fui. Com certeza, no passado assediei. Não forçando, mas constrangendo mulheres com uma brincadeira que a gente, hoje, tem certeza que de boba não tinha nada”.

O ator elogia a coragem da atriz Dani Calabresa, que já participou do Porta dos Fundos, ao denunciar Marcius Melhem, ex-chefe do núcleo de humor da TV Globo, por assédio sexual. “Ações como a da Calabresa incentivam mulheres que já passaram por isso a denunciar. Precisamos de mais Calabresas no mundo”, diz.

Porchat lamenta a forma como as vítimas de abusos são tratadas no Brasil. “É uma tristeza que a gente duvide da vítima, culpabilize a vítima, minimize o seu sofrimento, sua dor. Temos que dar total suporte para que todos esses casos virem exceção, não sejam a regra”, defende.



RACISMO 
O ator é um dos integrantes do movimento Em Desconstrução, idealizado pelo designer Marcos Guimarães, mineiro radicado em São Paulo, com o propósito de propor ações em torno do machismo, LGBTfobia, racismo e outros preconceitos estruturais.

“É hora de o homem se perceber machista, de o hetero se perceber homofóbico, de o branco se perceber racista. A ideia de desconstruir é muito legal. Lógico, ela só não basta. Tem que vir com ações, mudanças de comportamento, de olhar, do mundo ao redor. O tal racismo estrutural está na gente, precisamos diariamente nos desconstruirmos, nos percebermos machistas. Acho um excelente passo, além de todos outros que devemos dar”, diz Porchat.

É impossível terminar esta entrevista sem perguntar ao “Cristo” do Porta como ele agiria na pele do Salvador. “Se fosse Jesus, daria um estalo nos dedos e faria todo mundo compreender o próximo, compreender as ações, as atitudes que todo mundo tem. A partir do momento que você entende como cada um é, você acaba perdoando todo mundo”, responde Porchat.



PLUTO TV

Lançada no Brasil pela ViacomCBS, a Pluto TV é um serviço de streaming gratuito, que não precisa de registro. Estão disponíveis 24 canais fixos, incluindo Nick Jr. Club, Nick Clássico, Naruto, Pluto TV Anime, Os Três Patetas, cinco filmes e Porta dos Fundos. No futuro, há planos de um pop-up de Star Trek. O objetivo é chegar até o final de 2021 com 60 canais e 7,8 mil horas de conteúdo. Com 36 milhões de usuários ativos por mês e presença em 24 países, a empresa chega ao Brasil para disputar espaço com a TV aberta.

 
TEOCRACIA EM VERTIGEM
Especial de Natal. Em cartaz no canal do Porta dos Fundos no YouTube e na plataforma Pluto TV.