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HISTÓRIA

Filósofo mineiro lança livro sobre a democracia brasileira

- Foto: Bazar do tempo/Divulgação
Como a democracia se comportou no Brasil ao longo de 130 anos de experiência republicana? É esse o caminho que o filósofo Newton Bignotto, professor titular da UFMG, traça no livro O Brasil à procura da democracia: da proclamação da República ao século XXI (1889-2018) (Bazar do Tempo). 



O volume nasceu de uma série de conferências que Bignotto apresentou no primeiro semestre do ano passado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Ainda que república e democracia tenham um casamento “indissoluto”, nas palavras do acadêmico, ao longo de pouco mais de um século houve cisões. 

O momento atual, em que a crise institucional ameaça a já frágil experiência democrática no país, nos obriga a olhar para o passado para tentar entender o presente. Dessa maneira, e com viés múltiplo, em que aborda o pensamento de diferentes autores, Bignotto vai perfazendo um caminho entre a história política e a história intelectual.

Dividindo o volume a partir dos principais períodos da política nacional – A Primeira República (1889-1930), A Era Vargas e a Segunda República (1930-1964) e A Terceira República (1964-2010) –, Bignotto destaca, na parte final, a crise instaurada nesta década, culminando com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência. Não há respostas prontas, tampouco fáceis. “A democracia no Brasil nunca se consolidou de forma totalmente estável”, afirma Bignotto na entrevista a seguir.




O senhor escreveu que “um dos maiores desafios para historiadores, filósofos e cientistas sociais é pensar o tempo presente”. Com o governo Bolsonaro isso se torna mais difícil?
É um desafio metodológico, sempre difícil. Especificamente sobre o momento atual, Bolsonaro repete algo próprio dos regimes de sua natureza, que é estar sempre em movimento. O tipo de regime autoritário, que não está instalado no país, se comporta como uma pessoa em uma bicicleta. Se ela parar, cai. Quando o presidente faz seguidamente ataques à imprensa, ele está se mantendo em movimento. É inevitável que a imprensa, e qualquer pessoa que tenha apreço pela democracia, não aceite. Sou discípulo de Tocqueville (pensador francês), que falava que, se você quer saber qual o estado da democracia de um país, é ver como está a imprensa. Quanto mais imprensa houver, mais democrático ele será. É multiplicar, não diminuir. Com ataques, o governo se mantém em suposto movimento, criando atritos e impactos sucessivos em várias áreas. Como cidadãos, somos obrigados a repercutir isso.
  
O fascismo é outro tema forte do livro. Por que o fascismo italiano se tornou uma referência tão importante no momento atual?
Não estamos vivendo um regime fascista, isso é claro, ou então começamos a fazer comparações malucas. Não se deve comparar este momento com o fascismo italiano de 100 anos atrás. A situação na Itália era muito diferente. Como desde então estudamos muito o fascismo, aprendemos sobre o caráter de regimes autoritários em sociedades de massa. Há várias dimensões do fascismo. Uma vez que não existe partido fascista no Brasil, ele não é um regime, não é um partido. Emilio Gentile (historiador italiano) fala sobre a dimensão ideológica ou cultural do fascismo, a ideia de que a mentira se contrapõe a outra narrativa. Mas mentira é mentira. O que os fascistas fizeram no começo foi usar a mentira como arma política constante. Mentia-se descaradamente em busca da eficácia do gesto. Vemos isso se desenvolvendo agora, com o uso da mentira que está sendo feito hoje na cena pública. Também o culto da violência, das armas. Hoje em dia, está mais fácil ter arma no país mais violento do mundo. Isso fez parte não só da construção do fascismo italiano, como também do europeu. Não se trata de comparar, mas ver como os instrumentais teóricos daquela época são uma ferramenta para entender o presente. A mesma coisa acontece com a propagação de notícias, estamos no tempo das fake news. Na Alemanha dos anos 1930, Goebbels (ministro da Propaganda nazista) propagava um boato em Berlim às 8 da manhã. Seus agentes iam para os cafés e soltavam boatos para ver quanto tempo eles demoravam a chegar a cidades como Munique, Frankfurt. Ou seja, já naquele tempo monitorava-se a propagação da mentira.

No livro, o senhor trata ainda sobre guerra de facções. Enquanto houver tais disputas movidas por interesses pessoais não há como atingir outro patamar democrático?
A noção não é minha. Retiro-a de Maquiavel em parte e, sobretudo, dos federalistas americanos. A facção deve ser definida sobre o seguinte aspecto: a vontade particular se sobrepõe sempre ao interesse geral. Claro que todos temos interesses particulares, isso não é ilegítimo. O problema é quando todos se comportam como se não existisse algo como o interesse comum. Parece-me que os diversos grupos que disputam o poder se tornaram incapazes de nomear um interesse comum. Junto com a guerra de facções, cada vez mais existem ataques à Constituição, como se ela fosse um obstáculo para os interesses particulares. O histórico democrático brasileiro foi infelizmente muito interrompido ao longo do tempo por períodos autoritários, de fato que a democracia no Brasil nunca se consolidou de forma totalmente estável. A partir da metade da década em curso, houve novamente um agravamento da tomada do geral pelo particular.



A expressão mar de lama, como o senhor destaca no livro, vem do Brasil império. Somente mais recentemente é que a corrupção voltou a ser vista como o maior dos males do país, como o livro destaca. O que mudou? 
É claro que temos de fato um problema grave de corrupção no Brasil. Com a Constituição de 88, tornou-se possível a construção de órgãos de combate à corrupção mais eficazes do que os que tivemos no passado. Essa é a boa notícia. Quando falei em mar de lama, o combate à corrupção enseja outra pauta. Ele deixa de ser um fato quase absoluto, no sentido de que existe, para entrar na fronteira do combate moral e político, passa a agir em duas fronteiras que não necessariamente são convergentes. Às vezes, uma boa ação de combate exige segredos das investigações, um tratamento de ordem jurídica tem todo um ritual que deve ser preservado.
 
A Operação Lava-Jato age justamente nas duas fronteiras.
Ela tem dois aspectos. O primeiro é que ela desvelou o fato, não há dúvida. Dizer que operou no vazio me parece falso. O antigo juiz Sergio Moro quis repetir os caminhos da Operação Mãos Limpas, italiana, como mostrou em texto de 2004 (Considerações sobre a Operação Mani Pulite). Ali, havia uma relação especial com a imprensa, que é a de divulgar o mais rapidamente possível as ações para que se tornasse irreversível o curso delas. São introduzidos elementos políticos claros em um processo jurídico e, nesse momento, ela (a operação) passou a ter intervenção direta e imediata. A crítica que faço não é à imprensa, pois a obrigação dela é tornar os fatos públicos. Mas o juiz, não. Acho que a Lava-Jato perde sua capacidade de fato de combate no momento em que se troca uma pauta jurídica com uma pauta política.

O BRASIL EM BUSCA DA DEMOCRACIA
• Newton Bignotto
• Bazar do Tempo (264 págs.)
• R$ 58 (livro) e R$ 42 (e-book)