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LITERATURA

Livro: Escritora que viveu nas ruas transforma sua história num romance

- Foto: No ensaio Um teto todo seu (Editora Tordesilhas, 2014), a célebre escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) reflete acerca da presença feminina na literatura – ou a falta dela. No texto, ela pontua: “Uma mulher, se quiser escrever, precisa ter dinheiro e um teto só seu”.



Transportar essa máxima para o contexto brasileiro implica ter que superar uma série de empecilhos conjunturais, ainda mais quando se trata de uma mulher negra, de origem humilde, que conseguiu quebrar o ciclo de extrema pobreza de sua família e se tornou doutora em literatura.

Um percurso possível, mas longe de ser fácil, como revelam as páginas de Da vida nas ruas ao teto dos livros (Pallas Editora), livro que marca a estreia da escritora paranaense Clarice Fortunato.

Professora e pesquisadora, ela contornou uma série de adversidades pessoais, até chegar à Inglaterra, em 2015, para concluir a etapa estrangeira de seu doutorado, classificado como sanduíche no jargão da academia. 

Na época, Clarice estava determinada a pesquisar o universo de Gabriela, cravo e canela, romance de Jorge Amado publicado em 1958. Contudo, o distanciamento provocado pela vida num país estrangeiro fez com que ela desenvolvesse o ímpeto de estudar a própria história.



VOZES 


“Sempre que me pediam para contar a história da minha vida, eu paralisava. Ficava realmente mal. Quando estava na Inglaterra, vozes dentro de mim diziam para eu escrevê-la, colocá-la no mundo. Depois de enviar um e-mail para Denise Paraná perguntando o que ela achava da ideia, cheguei à conclusão de que só conseguiria me livrar dessas vozes colocando essa história no papel'', conta a escritora.

Inspirada em trabalhos como Sinfonia em branco (Alfaguara/Objetiva), de Adriana Lisboa, e A chave de casa (Record), de Tatiana Levy, Clarice decidiu que o resultado do exercício de escrita seria defendido como sua tese de doutorado, o que explica a presença de teóricos como Walter Benjamin (1892-1940) e Michel Foucault (1926-1984) nas epígrafes dos capítulos.

O resultado, porém, foge de padrões acadêmicos e se mostra como uma revisão dos 43 anos da autora, que, em diversos momentos, dá a impressão de simplesmente conversar com o leitor. Ao longo de 120 páginas, o livro se revela uma autobiografia romanceada de quem vivenciou os dissabores da miséria e do racismo.



“Escrevi sobre alguém que todo mundo pensava que não ia ser 'ninguém' na vida e, fazendo esse movimento, trago comigo uma ancestralidade inegável e inerente à minha história e posição na sociedade”, diz. “É como escreveu Conceição Evaristo: 'A minha voz recolhe as vozes da minha bisavó, da minha avó e da minha mãe; e de todas essas vozes negras se fará ouvir a ressonância'”.

Dessa forma, a história de Clarice Fortunato reflete, infelizmente, a realidade de muitas brasileiras. Filha de pai negro, analfabeto, e mãe branca de olhos azuis que lia o básico e sabia apenas assinar o próprio nome, ela nasceu no interior do Paraná. O casal formado sem a aprovação da família materna trouxe ao mundo 17 filhos.

Sete deles morreram muito cedo de doenças desconhecidas e 10 chegaram à idade adulta. Clarice é a única, até onde se sabe, com ensino superior. Mas cresceu sem pai, que foi embora quando ela tinha 5 anos.



PERIGO 


“Mulheres silenciadas, sozinhas, no escuro sempre correram perigo”, analisa a autora. “Precisamos juntar as vozes do passado e presente para que se possa romper com essas dores que se repetem, como um ciclo vicioso, e nos matam por dentro, impedindo-nos de ser inteiras.” 

Hoje professora em Santa Catarina, onde mora, ela trabalhou como babá desde a infância. Na adolescência, foi funcionária de uma fábrica de calçados, faxineira, empregada doméstica e também babá. Determinada a estudar, ela cursou letras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Estudei com a mesma disciplina e obstinação de um soldado que se prepara para uma guerra. Respirava livros”, relembra.

Em uma das passagens mais comoventes do livro, ela comenta sobre o tempo em que esteve em situação de rua, destacando essa como uma das lembranças mais difíceis de lidar.

“Vivíamos em situação de extrema vulnerabilidade. Além disso, era doloroso perceber que a nossa presença mendiga despertava nas pessoas mais medo do que compaixão. Mesmo na impossibilidade de rememorar com detalhes o que vivi nas ruas, é impossível esquecer o que senti nos dias mais miseráveis de nossa vida”, escreve, no capítulo intitulado Nós, moradores de rua: vida às margens.

Ainda assim, a autora avalia que, ao final da escrita, conseguiu ressignificar a relação com o próprio passado. “Quando a gente carrega um fardo, a melhor forma de lidar com ele é transformá-lo em algo que vai impactar a vida de outras pessoas. E eu espero que esse livro reverbere dessa forma.”



Para ela, que dedica o trabalho à vereadora assassinada Marielle Franco (1979-2018) e à escritora Maria Carolina de Jesus (1914-1977), o atual momento político que o país atravessa é delicado, e publicar o livro nesse contexto, é significativo.

“Gosto de fazer uma pontuação bastante clara: não podemos nos calar diante de um Estado que quer nos silenciar. Não vamos voltar para a senzala. Temos direitos e nossa voz está aí e vai ecoar.”

Trecho


A felicidade de um teto despertou o sonho de estudar. Olhava a vizinha de uniforme, indo para a escola, e via-me no lugar dela. Agora eu quase podia tocar o meu sonho: eu tinha um lar e podia, enfim, estudar! Convenci mamãe e fomos nos informar dos trâmites burocráticos. Para fazer a matrícula, era preciso o registro de nascimento, que eu ainda não tinha. No cartório, eu mesma declarei a maioria das informações sobre o meu nascimento, já que minha mãe não lembrava com clareza desses dados. Feito o documento, fui matriculada, pela primeira vez, numa escola. Eu me sentia transbordar de contentamento pela perspectiva de aprender a ler e escrever. Assim, comecei a me adaptar a uma nova rotina, alternando, no período matutino, a escola e, no vespertino, as tarefas domésticas: cozinhar, lavar roupas, limpar a casa e cuidar da minha mãe. Foi então que recebemos a visita inesperada da minha irmã mais velha. Eu me perguntava: mas por que ela apareceu só agora que já estamos instaladas? Seria por que ela soube que minha mãe estava aposentada? Deliberadamente, ela decidiu levar-nos para morar com ela, numa zona rural da cidade de Guairaçá. O lado bom da mudança foi nos livrarmos do meu padrasto, já que ele não estava em casa quando saímos. Por outro lado, onde fomos morar não havia escola, para a minha frustração. E eu voltei a imitar as outras crianças estudando porque sentia falta de estudar. 

DA VIDA NAS RUAS AO TETO DOS LIVROS
Clarice Fortunato
Pallas Editora
R$ 40