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Estado de Minas

Coletânea reúne as obras do poeta Jorge Salomão, inquieto aos 73 anos

Escritor afirma que ''clima odioso'' no país o levou a propor o lançamento


04/01/2020 04:00 - atualizado 04/01/2020 11:22

(foto: Rita Capell/divulgação)
(foto: Rita Capell/divulgação)

Jorge Salomão estava chateado com o clima de intolerância instalado no Brasil. Um dia, conversando com a editora, mencionou a vontade de fazer um livro para se animar. No matutar sobre o que seria possível, lembrou que muitas de suas obras estão esgotadas e, assim, propôs uma coletânea com os sete volumes publicados ao longo das últimas quatro décadas. O resultado está na antologia 7 em 1, lançamento da Gryphus. Além disso, o poeta do desbunde, como ficou conhecido nos anos 1970, tem uma coleção de projetos na manga, todos em vias de execução. Em breve, ele quer lançar Campo minado de flores e Panacum, além de um livro sobre o irmão, o também poeta Waly Salomão (1943-2003), cujo título provisório é Duas ou três coisas que sei dele ou Waly, Waly!.

Agora, é sentar e finalizar tudo para dar um gás que ajudem a tocar a vida, algo que Jorge sempre soube fazer. “Carrego em mim uma coisa de que gosto muito: a idade não me trouxe nenhuma dose de dor nem de arrogância com as coisas, sempre estou com muita alegria para o que vier, para as coisas em si. Gosto de conhecer pessoas. Gosto de não ter coagulado em mim o prazer de viver. Estou com 73 anos, sou debochado, brinco com as pessoas, ando na rua, moro há muitos anos em Santa Tereza (Rio) e as pessoas de lá, quando me veem, vêm e falam comigo. Viver é muito importante numa época tão áspera, difícil como está o presente, empesteado de ódio, de nojo, de todas as qualidades piores”, acredita.

Reunir Mosaical, O olho do tempo, Campo da Amérika, Sonoro, A estrada do pensamento, Conversa de mosquito, Alguns poemas e + alguns deu ao poeta a oportunidade de lançar um olhar panorâmico sobre a própria obra. Lançados entre 1994 e 2016, os livros apresentam a evolução da poesia e também da prosa de Jorge. “É legal isso porque você viaja. Lendo as coisas, ficava entusiasmado com meu ímpeto de escrever em certos livros. O campo da escrita é intenso, filosófico, utópico, mistura linguagens sonoras, escritas”, interpreta. “Você revisar seu próprio trabalho traz surpresas inacreditáveis. Jamais imaginaria que me entusiasmaria lendo coisas minhas. Escrevi isso, é muito legal, é bom, é fantástico”.

Ele se entusiasma também com o projeto da coletânea, especialmente com a “orelha”, da acadêmica Nélida Piñon e do jornalista Christovam De Chevalier (filho de Scarlet Moon), e a capa feita pelo filho, João Salomão, designer gráfico radicado em Nova York e orgulho do pai. “João veio do grafite, passou para a ilustração e tem feito muita coisa em revistas americanas. Chevalier é um excelente poeta, e Nélida, uma grande escritora, que escreveu palavras sobre minha pessoa que são inacreditavelmente geniais”, garante.

Olhar analítico sobre o conjunto dos poemas


Olhar para esse conjunto de livros fez Jorge ter uma ideia da evolução da própria obra. Quando escreveu Mosaical, nos anos 1990, ele lembra ter colocado os versos em um saquinho de plástico para levar para a editora. De lá para Alguns poemas e alguns, publicado em 2016, há um caminho traçado não apenas pela experimentação da forma, mas pelo conteúdo.

“Começo a dialogar com a prosa poética e, depois, com Campos da América, que é um discurso estratosférico, um discurso denso, filosófico e forte sobre a situação do mundo, sobre como nos posicionamos frente a tanto acontecimento desastroso, a tanto avanço tecnológico por um lado e desumanidade, por outro”, repara. Sonoro, ele aponta: é um livro de poemas que dança um pouco entre Brecht e Rimbaud, autores que Jorge aprecia mito. A estrada do pensamento é mais reflexivo e filosófico, sobre como prosseguir e o que fazer. Conversa de mosquitos carrega uma anedota interessante. Jorge estava lendo um livro do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein no parapeito de uma janela, quando viu dois mosquitos. “E eles se olhavam e parecia que estavam conversando”, lembra, aos risos, ao se recordar também da reação do irmão, Waly, ao título da obra.

Jorge achava que boa parte da poesia feita na época era acadêmica demais, chata demais. “E eu não gosto disso”, avisa. “Sou uma pessoa muito vulcânica, discuto muito os conceitos, gosto de destrinchar conceitos, de misturar informações.” Com um apego à sonoridade dos versos, ele começou a reparar que esse aspecto estava fragilizado e a poesia estava se tornando muito parnasiana. Olhando agora para os sete livros, compreende o conjunto da obra. “Gosto do avesso das coisas. Ou de revirar as coisas. Acho que, ao conceituar, você pode também dar uma conotação de rotação de tudo, e não ser uma coisa estabelecida”, repara.

Mergulho na música, inspirado pelo irmão


Três anos mais velho, Waly foi muito importante na vida de Jorge Salomão. Foi ele um dos grandes incentivadores da escrita poética, mas também das letras de música. Waly e Antônio Cícero insistiram muito para que Jorge escrevesse música. “Tudo que eu falava, Waly e Cícero diziam que era genial e ficavam falando: ‘você devia fazer letra de música’. Mas eu achava minhas frases muito longas, chatas. E eles batiam na tecla. Já eram famosos. E isso aconteceu misteriosamente”, conta.

Um encontro casual, na praia, com o compositor Nico Rezende resultou em Noite, gravada por Zizi Possi, e Pseudo blues, levada às listas das mais ouvidas pela voz de Marina Lima. As músicas catapultaram Jorge ao mundo dos estúdios e gravadoras. “Eu entrava em um táxi e tocava Noite, ia comprar cigarro e tocava Pseudo blues. Uma loucura!”, lembra.

Sobre o livro dedicado a Waly, Jorge antecipa que será um conjunto de memórias e reflexões dedicadas ao irmão. “Está pronto e é sobre nossas vidas, nossas brincadeiras, nossas uniões e desuniões, nossos amores. Desde criança a gente era muito unido. Ele sempre teve muita proteção comigo. “Nossas vidas inteiras foram muito paralelas, mesmo em momentos de desunião. A gente tinha uma paixão grande um pelo outro. Talvez tenha sido não só uma coisa de irmão, mas por termos os dois escolhido caminhos libertários, que possibilitaram uniões mais fortes, alianças progressistas”.

7 em 1
• De Jorge Salomão
• Editora Gryphus
• 252 páginas
• R$ 59,90


Minha sensibilidade

minha sensibilidade
não é lata de lixo não
nem espremedor de laranjas
a triturar frutas sem parar
nem alvo para testes de pontaria
nem rede para se espreguiçar
nem milho de pipoca prestes a estourar
nem ar-condicionado
nem nada do que se possa esperar
nem ventilador a atirar o caos para o ar
nem mensagens que não puderam
numa garrafa entrar
nem barco sem condições
atirado a altas ondas do mar
minha sensibilidade é simples
não gosta de barulho
mas gosta de dançar
é simples
e volta e meia
se perde no filme invisível
que passa por entre as rochas
e fica a indagar o seu caminhar
minha sensibilidade
é uma interrogação
neste deserto de absurdas afirmações
não é nada
do que se possa esperar
é simples
e quer aumentar...


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