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Estado de Minas

Tradutor de Elizabeth Bishop vê exagero na polêmica sobre apoio a militares

Escolhida como homenageada da Festa Literária de Paraty de 2020, poeta norte-americana, primeira estrangeira no papel, é acusada de apoiadora do Golpe de 64


26/11/2019 17:10 - atualizado 26/11/2019 17:57
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Elizabeth Bishop em sua casa em Ouro Preto em 1970
Elizabeth Bishop em sua casa em Ouro Preto em 1970 (foto: Arquivo EM/O Cruzeiro)
Cartas datadas entre 1964 e 1965 motivaram a polêmica literária desta semana. O anúncio da escritora americana Elizabeth Bishop (1911-1979) como homenageada da 18ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – a primeira estrangeira celebrada pelo evento, que será realizado de 29 de julho e 2 de agosto de 2020 – trouxe à tona o conteúdo da correspondência que ela trocou com o escritor Robert Lowell (1917-1977).
 
“Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva – tudo terminado em menos de 48 horas”, escreveu Bishop a Lowell em 4 de abril de 1964, três dias depois do golpe que destituiu o presidente João Goulart. “A junta militar provavelmente parece muito pior vista de fora do que vista daqui. Como você sabe, os militares no Brasil jamais na sua história tentaram tomar o poder ou mantê-lo – e Castelo Branco relutou em ser presidente... A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera 'deposição', e não uma revolução”, escreveu ela ao mesmo interlocutor em 13 de abril de 1964.
 
Tais cartas e o fato de Bishop ser uma estrangeira homenageada no lugar que sempre foi de autores brasileiros fizeram com que escritores e editores contestassem a escolha. Tradutor de Bishop, o poeta e professor Paulo Henriques Britto afirma que parte desse conteúdo é público desde 1995, quando foi editado pela Companhia das Letras o livro Uma arte: As cartas de Elizabeth Bishop.
 
O tradutor e poeta Paulo Henriques Britto
O tradutor e poeta Paulo Henriques Britto (foto: Reprodução/Facebook)
“Algumas cartas já estão naquele livro. Em 1999, quando traduzi Poemas do Brasil, escrevi uma introdução, Bishop e o Brasil, em que analiso tudo isso (o livro foi reeditado em 2012, com o nome de Poemas escolhidos). Comento a ingenuidade dela, colada ao discurso de Lota (Macedo Soares, companheira da americana, idealizadora do Parque do Flamengo), que era ligada ao (Carlos) Lacerda. A Bishop nunca fez qualquer pronunciamento público a respeito do governo militar. Tudo o que existe são cartas privadas que ela não tinha a menor ideia que algum dia seriam publicadas”, comenta Britto.

LIBERAL De acordo com ele, Bishop, nos EUA, sempre foi “liberal, com discurso fortemente antirracista.” Para o tradutor, se uma crítica pode ser feita à escolha da Flip é o fato “de que ela nunca se interessou muito pela literatura brasileira nem tinha grande interesse pelo país. Mesmo assim, o Brasil entrou na poesia dela. Agora, a polêmica tem mais a ver com o timing, meio infeliz, pois estamos no meio de um governo extremamente boçal. Mas há certo exagero em dizer que ela foi uma defensora ferrenha dos militares.”
 
Dona da editora paulista Nós, Simone Paulino diz que em um primeiro momento comemorou a escolha. “Conhecia sua poesia, ela era uma mulher, lésbica, então achei que traria um ar interessante para a Flip, inclusive depois de Euclides da Cunha (o homenageado de 2019). Mas não sabia dessa faceta dela”, admite Simone, que vinha negociando, há dois anos, trazer para o Brasil o ensaio On Elizabeth Bishop, do romancista e crítico Colm Toibin. “Diante da homenagem, pensei em correr para publicar o livro.” Pois cancelou a publicação.
 
“Estamos numa disputa de narrativa. Se ela tivesse sido homenageada antes, talvez não houvesse esse impacto. Mas Elizabeth Bishop chama o Golpe de 64 de revolução. É o que a extrema direita quer fazer agora, reescrever a história”, comenta Simone. A despeito do contexto da data da correspondência, escrita mais de 50 anos atrás, a editora responde: “A palavra permanece.”
 
Nas redes sociais, o coro dos descontentes foi grande. “A Flip não foi sempre para inglês ver? Os preços em Paraty não são cobrados em dólar? O público da Flip não usa chapéu importado? Enquanto isso, a gente, em nossas festas, celebra Cabral, Paulo Freire e Conceição (Evaristo), não é não?”, publicou o escritor Marcelino Freire.
 
Fã de Bishop, o escritor Marcelo Moutinho recorreu às opiniões políticas da poeta para justificar sua crítica à escolha da Flip. “Todas as pessoas têm o direito de errar e de fazer suas próprias revisões. Não me filio a patrulhas eternas. Eu me pergunto, porém, se neste momento de loas efusivas à ditadura, e mesmo à tortura, não seria o caso de prestar tributo a quem tenha uma história de compromisso com a democracia sem maiores hesitações.”
 
Sem entrar em discussões de cunho político, a curadora da Flip, Fernanda Diamant, justificou a escolha. “Ela é uma das maiores poetas do século 20, teve uma história trágica e uma vivência com o Brasil muito ambígua entre o elogio e a crítica”, explica. “Ela se incomoda com uma série de coisas com que a gente também se incomoda.”
 
Vencedora do Prêmio Pulitzer em 1956 (por North and South), Bishop chegou ao Brasil em 1951. Ficaria apenas duas semanas, mas se apaixonou pelo país e pela arquiteta Lota de Macedo Soares (1910-1967).
 
Consagrada e premiada, Bishop na verdade publicou menos de 10 livros em vida. Um deles é An Anthology of Twentieth Century Brazilian Poetry (Uma antologia da poesia brasileira do Século 20), editado por ela e com poemas traduzidos por Bishop e outros tradutores. João Cabral de Melo e Neto e Carlos Drummond de Andrade têm poemas ali.
 
Casa Mariana, localizada em Ouro Preto
Casa Mariana, localizada em Ouro Preto (foto: Maria Tereza Correia/EM)
Entre idas e vindas, Bishop viveu no Brasil até 1971. Ouro Preto é uma cidade importante em sua trajetória. Em 1965 ela comprou uma casa do final do século 17, início do 18, na Rua Conselheiro Quintiliano. Durante três anos, empreendeu uma extensa reforma no imóvel de 500 metros quadrados, situado numa área de 7 mil metros. Ficou com a casa até sua morte, em 1979, mesmo que em seus anos finais pouco a tenha frequentado.
 
Chamada de Casa Mariana, homenagem à poeta Marianne Moore, mentora de Bishop, a propriedade foi adquirida pela família Nemer em 1982. O quarto que pertenceu a Bishop é o menor dos cinco da residência. No vidro da janela está inscrita a data de nascimento do chef Jesse Dunfod Wood (22 de outubro de 1977), que teria nascido no quarto de Bishop a pedido do pai, o pintor Hugh Diarmid Dunford Wood, fã da poeta.
 
À exceção das estantes abarrotadas de livros, que ocupavam a residência, que Bishop levou para os EUA quando retornou ao país natal, em meados dos anos 1970, boa parte dos móveis continua como na época de sua moradora ilustre. Em 2011, quando do centenário da escritora, a família colocou a casa à venda. “Quisemos aproveitar a efeméride para ver se alguma universidade se interessava. Como não houve interesse, tiramos a casa da venda”, comenta o artista plástico José Alberto Nemer, que atualmente é o gestor da residência. Há dois anos a Casa Mariana sofreu uma grande restauração. (com agências)
 


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