Tanto fizeram e continuam fazendo, que distopia, a exemplo de policial, guerra, romance, já se consolidou como um subgênero literário, com nicho exclusivo em algumas livrarias estrangeiras. Ficção científica e literatura futurista ou de antecipação se tornaram qualificativos demasiado genéricos para fantasias ambientadas em sociedades opressivas ou constantemente assombradas por ameaças autoritárias.
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Romances abordam o suicídio pela perspectiva da dor dos que ficamEdney Silvestre vem a BH lançar seu novo romanceJornalista Régis de Godoy-Rocha lança o romance 'A mão e o açoite'Da obra de Ray Bradbury, por exemplo, só Fahrenheit 451 divide a mesma prateleira de 1984, de George Orwell; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; Nós, de Yevgueni Zamiátin; e O homem do castelo alto, de Philip K. Dick.
Os clássicos distópicos não saem, et pour cause, dos catálogos das editoras, são constantemente retraduzidos e convertidos em filmes e séries de TV. Avidamente consumidos por puro deleite ou mesmo por masoquismo e catarse, sobretudo depois da eleição de Donald Trump, eles ganharam, nos últimos tempos, pelo menos uma dedicada praticante de alto nível: a canadense Margaret Atwood, premiada com o prestigiadíssimo Booker Prize pela continuação de O conto da aia.
Em The testament, Atwood nos devolve, 15 anos depois, à teocracia fundamentalista e militarizada de Gilead, em relato não mais conduzido por Offred, mas por três vozes femininas: a instrutora Lydia e duas jovens que não conheceram o mundo antes da tirania machista. Era intenção da autora não levar O conto da aia adiante, mas foi convencida do contrário pela supressão da liberdade e a assustadora ascendência de religiosos fanáticos em diversas democracias laicas, além de certas dúvidas levantadas por leitores do romance desde sua publicação.
A ficção distópica era, até pouco tempo, um feudo masculino. O protagonismo conquistado por Atwood veio dar continuidade a um efêmero desvio ocorrido em 1940, com a publicação de Kallocaína, da sueca Karin Boye (1900-1941). Poeta mais querida dos suecos, Boye escreveu apenas dois ou três livros de ficção, nenhum do mesmo vulto e repercussão internacional de Kallocaína – Um romance do século 21, que acaba de ser reeditado pela Carambaia, em nova tradução de Fernanda Sarmatz Akesson.
A tradução anterior, do gaúcho Janer Cristaldo, saiu pela Editora Americana, em 1974, e até em sebo é difícil encontrá-la. Kallocaína não se traduz por “Calocaína”, bom nome para remédio contra dor e droga ilegal. Deriva de Kall, Leo Kall, seu inventor, fictício cientista do totalitário Estado Mundial, que atrás das grades escreveu suas memórias da distopia em que teve a desventura de viver. Não é opioide, mas uma espécie de pentotal turbinado, o suprassumo do que vulgarmente chamam de “soro da verdade”. Injetado na corrente sanguínea do paciente, solta-lhe a língua com mais eficácia que as promessas de uma delação premiada.
SUICÍDIO
Boye teve uma vida conturbada, confrontando a família, a crença religiosa e a identidade sexual. Livre do casamento infeliz com um colega de ativismo político de esquerda, assumiu seu lesbianismo, mas a depressão levou-a ao suicídio, em abril de 1941, um ano depois do lançamento de Kallocaína.
A decepção que tivera com a União Soviética em 1938 e o que presenciara nos albores do nazismo, numa estada em Berlim para tratamento psicanalítico contra a depressão, foram os detonadores do livro, como também de 1984, publicado oito anos depois. Não se sabe se Orwell conhecia o romance de Boye. Há pontos em comum entre Leon Kall e Winston Smith, o anti-herói de 1984, assim como entre o Estado Mundial de Kallocaína e o de Admirável mundo novo.
Tiranias são espelhos umas das outras: o Estado é tudo, o indivíduo não é nada, o amor é um sentimento obsoleto e, acima de tudo, perigoso, subversivo. O livre-arbítrio, um luxo inadmissível. O que importa é a ordem, é a harmonia sob tacão de forças armadas e tecnologicamente avançadas a serviço de uma elite difusa.
O slogan do Estado Mundial de Huxley – comunidade, identidade e estabilidade – é engodo demagógico, invalidado pela ausência dos valores básicos da liberdade de escolha e expressão, da fraternidade sincera e da igualdade social. Huxley agendou seu “mundo novo” para circa 2545 (ou 632 anos d.F, isto é, depois de Ford, Henry Ford), mas em 1959 admitiu ter subestimado a rapidez com que os novos recursos de manipulação do comportamento humano avançaram nas duas décadas anteriores.
Huxley inventou o soma, uma espécie de “soro da euforia” que induz as pessoas a um estado de otimismo e bem-estar físico, de inestimável valia para a sustentação de qualquer ditadura. É um consolo constatar que nem o soma nem a kallocaína tenham sido inventados. Talvez porque, a essa altura, desnecessários. (Estadão Conteúdo)
KALLOCAÍNA
. De Karin Boye
. Tradução: Fernanda Sarmatz Akesson
. Carambaia
. 256 páginas
. R$ 86,90
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