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Literatura

Os grandes dilemas humanos ganham eco na obra do Prêmio Nobel, Peter Handke


Nascido em 1942, o escritor austríaco Peter Handke não traz, na própria infância, as marcas profundas do nazismo e do Holocausto. Ao lado dos cineastas Werner Herzog (1942), Win Wenders e Rainer Fassbinder (ambos de 1945), o recente Prêmio Nobel será o principal responsável por armazenar na literatura germânica os valores sobressalentes na Guerra Fria, em relativa independência da catástrofe gerada pela Segunda Guerra. Seu livro mais ambicioso leva o título de O peso do mundo. Trata-se do diário íntimo que escreve entre 1975 e 1977 e publicado no ano em que o encerra.

A exemplo de Julião Hospitaleiro, criação imortal de Gustave Flaubert, o escritor austríaco e os cineastas alemães tentam descortinar um possível mundo novo que redima, nos caprichos da santidade, sua culpa. Não mais carregam às costas o funesto passado pátrio. Pesa-lhes o mundo. Cito uma frase definitiva do diário. "Na sala de cinema.
Um homem tocou o ombro nu de Raquel Welch, e eu tomei consciência das minhas mãos frias." As mãos frias do romancista enxergam a realidade no drama amoroso dos atores hollywoodianos e se distanciam definitivamente das "mãos sujas", de que fala Jean-Paul Sartre, o Nobel rebelde, primo pobre de Bob Dylan.

Ao contrário dos romancistas que o antecedem, como Christa Wolf, que optou por permanecer na Alemanha Oriental e ser vítima e refém da Stasi (a polícia secreta), ou Günter Grass (também premiado com o Nobel), os artistas que Peter Handke representa optam por uma arte de tom intimista, em que se vasculham as pequenas misérias e as grandezas medíocres do cotidiano, se vivido entre as quatro paredes da subjetividade fria. Não terá sido por coincidência que, aos 28 anos, Handke escreve e que, aos 30, Wenders filma O medo do goleiro diante do pênalti. Nada mais distante da ameaça do gol no futebol que os notáveis poemas do nosso Carlos Drummond sobre o medo durante a ditadura Vargas e as invasões nazifascistas.

A literatura alemã perde o sentido alegórico assumido pela coletividade culpada e o tom épico da grande prosa ocidental, de que é exemplo Cervantes. Ganha pé o tom confessional e intimista, herdado dos bons prosadores franceses do século 20.

Escritas em geral na primeira pessoa do singular, as poucas páginas dos livros publicados não se classificariam, em português, como "romance", mas como "novela".

Nada mais próximo do estilo literário de Handke que o de outro Nobel, Albert Camus, autor de O estrangeiro. Nesta famosa novela, o sentimentalismo inerente à narrativa subjetiva francesa é domado pelo behaviorismo curto e grosso de Ernest Hemingway, como no conto Os assassinos. Nada mais próximo de Handke que outro e recente Nobel, o francês Patrick Modiano, cujo universo romanesco se limita a peripécias singulares na bela, sedutora e furtiva Paris.

A presença da Segunda Grande Guerra está inscrita na obra de Peter Handke por uma pequena, magistral e definitiva obra de arte. Ela faz dupla com O estrangeiro, se nos lembrarmos da frase que abre o livro de Camus: "Mamãe morreu hoje.
Ou talvez ontem, não sei". A mãe de Peter Handke se suicida no dia 21 de abril de 1971. Naquele ano e no seguinte, ele escreve e publica a biografia da mãe sob o título A desgraça indiferente (ainda sem tradução no Brasil).

EXTRAORDINÁRIO Se a decisão do prosador visa a evidenciar uma vida humana que não escapou à tragédia hitleriana, a realização da obra visa a evidenciar algo mais extraordinário. Handke opta por recuperar a biografia da mãe pelo recurso à língua alemã tal qual falada à época nazista. Foi essa língua que a alienou e, fatalmente, a conduziu ano após ano à morte. É a própria língua alemã, inculcada em todo e qualquer cidadão ou cidadã durante o período hitleriano, que escreve de modo indiferente a desgraça da sua mãe. Ela se conforma à linguagem que lhe é imposta, conformando-lhe a vida autodestrutiva. Seu suicídio estava/está escrito na História.


Não é tampouco por coincidência que, sob os céus de Berlim, Handke e Wenders voltam a se dar as mãos em 1987. Um escreve e o outro filma As asas do desejo. Anjos não sentem as angústias, dores e alegrias dos humanos. Será que nos escutariam? Por desejar tocar o corpo da mulher amada, um da legião de anjos decide se humanizar às vésperas da queda do muro de Berlim. Apoia-se nas lições sobre a História do filósofo Walter Benjamin e nas Elegias do Duíno, do poeta Rainer Maria Rilke. Nunca esqueceremos do verso que as abre: "Quem, se eu gritasse, entre as legiões de anjos me ouviria?". (
Estadão Conteúdo)
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