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Estado de Minas ENTREVISTA

'Para os africanos, já houve vários fins do mundo', afirma Mia Couto

O escritor moçambicano, que também é biólogo, veio ao Brasil receber o título de honoris causa da UnB e falou sobre política, educação e meio ambiente


Mia Couto durante palestra em BH, em abril deste ano(foto: Marcos Vieira/EM/D.A.Press)
Mia Couto durante palestra em BH, em abril deste ano (foto: Marcos Vieira/EM/D.A.Press)
Mia Couto deve terminar um livro de memórias até o final do ano. Lembranças da adolescência em Beira (Moçambique), cidade natal na qual viveu até os 17 anos, dão forma ao relato, mas o autor não vai falar do furacão que destruiu a cidade na década de 1970, apesar de ser uma recordação forte.
 
Couto ficou muito abalado com o furacão que voltou a devastar a cidade, em março deste ano. Ele estava, justamente, em um voo em direção a Beira com a intenção de passar uns dias a fim de colher material para o livro, quando a tempestade começou.

O avião foi desviado para uma cidade no Norte de Moçambique e, quando conseguiu retornar à terra natal, se deparou com um rastro de destruição que deixou mais de 200 mortos. “Foi muito duro, tive que ser consolado por meus amigos escritores da Beira. Depois voltei e fiquei duas semanas na cidade para continuar o que já era meu trabalho, que era meu propósito inicial”, conta o escritor, que esteve nesta semana em Brasília, onde recebeu o título de honoris causa da Universidade de Brasília (UnB). Ele está decidido a não incluir o furacão de sua adolescência no livro por receio de ser oportunista e desrespeitar as vítimas da tragédia deste ano.

Às vezes, a literatura é atropelada pela realidade e tudo se reformula. Às vezes, a realidade é tão pungente que vira literatura, como na série As areias do imperador, a trilogia encerrada em 2018 na qual Couto mergulha na história colonial para contar a ascensão e queda do Estado de Gaza. A publicação mais recente, no entanto, é uma peça de teatro: O terrorista elegante e outras histórias foi escrita a quatro mãos, com o angolano José Eduardo Agualusa, e marca a incursão de Couto pelo mundo da dramaturgia.

Sobre os encontros com o público, Couto, que se tornou uma celebridade literária no Brasil, conta que adora a oportunidade de dialogar, mas tem consciência de que está numa posição privilegiada, especialmente quando se trata de literatura africana. Na entrevista a seguir, o autor moçambicano falou sobre o novo livro, mas também sobre suas preocupações diante de um mundo que nega as mudanças climáticas e sobre o desconhecimento que há entre Brasil e África, apesar das heranças comuns nas duas sociedades.

As universidades brasileiras têm enfrentado sérios problemas com o novo governo: há o corte de gastos, além da crença de que as áreas de humanas são dispensáveis. O senhor é biólogo, mas também é escritor. Que recado daria a quem pensa que uma área é mais necessária que a outra?
Olha, sou uma vítima desse pensamento. Quando comecei minha formação, desde a escola primária, acho que perdi muito, porque não havia nenhuma preocupação com a área de humanidades, das artes, com o que podia ser a resposta para a curiosidade, para a imaginação de uma criança. Porque essa é uma questão de como lidar com a própria infância, com pessoas que estão num momento que querem se espantar com o mundo. A mim preocupa muito que haja mais um golpe nesse território, que é fundamental. É um assalto tão avassalador que, a certa altura, não tem que ter pruridos sobre isso, uma questão é o assunto das escolhas políticas do país, isso diz respeito ao Brasil, mas quando o assunto é a democracia e a ditadura, tem a ver com todos nós.
 
E como essa nova fase do Brasil tem sido percebida em Moçambique?
Para quem conhecia as considerações do atual presidente, mesmo antes da campanha, não há qualquer coisa que surpreenda, mas, para o moçambicano comum, está cada vez mais claro essa coisa de uma via que não respeita o quadro institucional, com uma diplomacia muito estranha na história do Brasil, porque, quer o governo fosse de esquerda ou de direita, a diplomacia era feita de maneira profissional, sempre na tentativa de começar amizades, e isso parece ter sido abandonado.

Pouquíssimos brasileiros conheciam a história contada na trilogia As areias do imperador, apesar de o Estado de Gaza ter sido praticamente um império. Por que decidiu escrever essa trilogia?
Escolhi esse período em Moçambique porque é muito rico do ponto de vista da história, de coisas que são do passado, mas estão vivas no presente. É uma situação histórica particular, estamos na presença de dois domínios imperiais, um dominado por um africano, uma espécie de colonialismo africano, e outro europeu, em disputa no mesmo território. Isso me parece bastante rico, a história de um mundo que nunca foi linear e nunca foi fácil de entender.

Há muito mais inclinação em conhecer o Brasil por parte dos africanos e dos moçambicanos do que no sentido contrário. Por que, na sua opinião? 
Realmente, existe uma não correspondência entre aquilo que conhecemos uns dos outros. A África conhece mais do Brasil do que o Brasil conhece da África, com o agravante que muitos brasileiros pensam que conhecem, e o pior grau da ignorância é esse. Imaginam que é fácil, porque há algo de África dentro do Brasil, mas, na verdade, também há uma falha na própria África em promover isso, ela tem que ser mais agressiva nessa política de se mostrar ao mundo, porque não é uma, são várias Áfricas. É preciso o reconhecimento de que a África é uma coisa plural, porque de maneira fácil se fala da África como se fosse uma.

“Muitos brasileiros pensam que conhecem”: há um equívoco na maneira como olhamos para a África?
Há uma grande margem que não conhece e não quer conhecer, não faz parte de suas preocupações, mas há uma outra margem do Brasil que se preocupa e quer, pelo menos, resgatar uma ligação que, é claro, está presente no Brasil pela escravidão e pela herança cultural que isso traz. Mas, mesmo o interesse entre esse setor, apesar dos avanços, tem muito pouco a ver com a África. A África tem uma carga da modernidade, que não é só da tradição, ela vive com um pé no passado recente, claro, mas o mais bonito é o que a África construiu hoje, e isso é pouco conhecido.

A literatura pode ser uma forma de contornar isso? Afinal, o senhor é um autor adorado no Brasil…
Não sei se, se eu fosse africano de raça negra, teria essa mesma adoração. Estou consciente de que me beneficiei do privilégio de ter uma raça que se abre, que tem mais receptividade. Isso é grave, mas é realidade e é contra minha vontade. E o que quero é lutar contra essa condição, usar esse privilégio para isso. Há muitos escritores importantes em Moçambique para se conhecer e espero que esse lugar de visibilidade leve brasileiros a querer conhecer outros escritores. E muitos deles são mulheres, outra coisa importante. Onde vou, trago livros de vários autores, numa espécie de pequena guerra de guerrilha, e insisto que não estou aqui sozinho, a literatura moçambicana é feita por múltiplas vozes, como as de Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane e Lucílio Manjate.

Soube que está escrevendo um novo livro e que nele falaria do furacão que arrasou Beira nos anos 1970, mas que desistiu diante da tragédia recente. Como lidou com isso? Com a tragédia? E o que há no novo livro?
Eu estava já escrevendo esse livro, minhas memórias, de adolescência, memórias da cidade onde nasci e cresci até os 17 anos, e tinha programado uma viagem para reavivar lembranças, para ter um contato mais próximo, porque desde que saí, vivo na capital, e quando fiz a viagem houve o furacão, o avião foi para o Norte. Estou continuando a escrever como se não houvesse o ciclone e tem uma espécie de um pudor de trazer esse assunto para esse livro, porque me parece uma coisa de ocasião, de oportunidade que não quero ter, porque vivi de maneira intensa esse drama do ciclone. Não quero colocar em ficção, tem que ter respeito.

O senhor é muito produtivo, escreve praticamente um livro por ano, mas também trabalha como biólogo. Como as duas atividades dialogam? 
Sou muito irresponsável. Uma das respostas é que realmente, quando estou fazendo biologia, também estou fazendo literatura, não vejo bem essa fronteira. Meu trabalho permite, porque trabalho no campo em contato com pessoas mais que a natureza. Mas tenho insônias crônicas e, portanto, aproveito isso como um momento produtivo. Tornei-me amigo da insônia e aquilo se resolveu.

O senhor é diretor de uma empresa que avalia impactos ambientais. Como encara o que vem acontecendo no Brasil em relação à Amazônia e no mundo em relação à descrença diante da mudança climática? 
Preciso dizer duas ou três coisas sobre isso. Primeiro, o incêndio da Amazônia começou antes, num incêndio menos visível, menos midiático, que foi o incêndio que se abateu sobre as instituições brasileiras que tratam das questões ambientais. Esse incêndio já estava lavrando há mais tempo. A segunda é que sou adepto de que é preciso não separar as questões ambientais, não aceitar que sejam tratadas como um gueto. Os incêndios na Amazônia são uma questão ambiental, mas são, sobretudo, uma questão política, econômica, de decisão do governo, é preciso não ser tão separado. Essa ambientalização tem que ser vista na totalidade. E, sobre as mudanças climáticas, acho que as evidências são tão claras que é preciso realmente uma total ausência, uma total cegueira para aceitar que não existem. É obviamente um discurso de ordem política para apagar o que é evidente. Mas, também, por parte dos defensores do meio ambiente se instaurou uma espécie de clima do fim de mundo e esse discurso apocalíptico nem sempre ajuda porque cria medo, cria uma angústia que propicia o surgimento dos salvadores, dos messias, que são essas novas tendências populistas. Elas têm todo o terreno psicológico para surgir como a solução. Porque eles precisam desse ambiente de criação de medo, de ausência de saída.

Como isso é percebido em Moçambique?
Para os africanos, já houve vários fins do mundo. O que se está a viver hoje, sobretudo na Europa, é que esse território da civilização deixou de ser o centro e isso é vivido como o fim do mundo. Se você perguntar a um indígena das américas, ele viveu, durante séculos, esse sentimento de fim do mundo. A mesma coisa para os africanos, que enfrentaram a escravidão e depois o colonialismo. Não é novo esse sentimento de que se está a perder o chão.

E a literatura nisso, qual o papel dela?
Ela faz o contraponto desse ambiente de criação de medo e obscuridade. Porque há uma coisa importante que é o apagamento do que é a subjetividade, de um discurso falsamente coletivo. Enquanto o discurso político fala da distinção entre maiorias e minorias, a literatura insiste na observação a partir da subjetividade e afirma que cada pessoa é uma maioria, é a humanidade inteira.


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