“O que estou escrevendo agora será (se algum dia eu terminar) algo assim como um antirromance, uma tentativa de romper os moldes em que esse gênero está petrificado. Penso que o romance ‘psicológico’ chegou a seu fim, e que, se havemos de continuar escrevendo coisas que valham a pena, é preciso arrancar em outra direção. O surrealismo, em seu momento, indicou alguns caminhos, mas ficou na fase pitoresca”. Esta descrição de algo totalmente inovador do ponto de vista literário foi escrita há 60 anos. É o trecho de uma das cartas de Julio Cortázar a Jean Barnabé. Datada de junho de 1959, a correspondência fala sobre o processo criativo de Rayuela, que no Brasil ganhou tradução literal – O jogo da amarelinha –, e faz parte da nova edição lançada pela Companhia das Letras, com tradução do jornalista e escritor Eric Nepomuceno.
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Eric Nepomuceno diz que a edição traz uma tradução absolutamente nova. Experiente – traduziu obras de Gabriel García Márquez e Eduardo Galeano –, ele ressalta duas particularidades do processo. “A complicação do Cortázar, especialmente n’O jogo da amarelinha, é a fluidez e o coloquialismo do texto, com palavras repetidas e outros detalhes. Buscar o tom foi a grande dificuldade, tecnicamente falando. Na literatura, como na música, há melodia, dissonância, harmonia, tonalidade. É complicado manter isso, sobretudo num livro de mais de 500 páginas, mas ele mantém isso de maneira magistral.
A outra dificuldade é o fato de não poder mostrar o trabalho a Cortázar (1914-1984), de quem chegou a ser próximo. “Queria muito poder ligar pra ele e falar: ‘Olha, você me pediu e eu consegui’. Mas ele foi embora... Sempre soube que ia terminar a tradução sem poder fazer isso”, revela o brasileiro.
TRIÂNGULO
Eric Nepomuceno não se considera tradutor profissional. “Sou um escritor que traduz os amigos e o que me inquieta”, afirma, definindo tradução como “um triângulo conjugal” em que todos os lados têm que ser fiéis. “Tenho que ser fiel ao castelhano, idioma original do autor e do livro. Tenho que ser fiel ao português brasileiro, o meu idioma. E ainda ser fiel ao livro.
O jornalista e escritor, que morou em Buenos Aires, exalta as características que fizeram O jogo da amarelinha se destacar na época que a América Latina conquistou o mundo por meio das obras do colombiano Gabriel García Márquez, do peruano Mario Vargas Llosa e do argentino Jorge Luis Borges. “Quando saiu, esse livro foi uma revolução. Era uma sequência de contos que rompia toda a sequência da escrita pela linguagem coloquial, a transição entre dois mundos, e depois por sugerir uma segunda leitura alterando a ordem dos capítulos. Muito inovador, muito perfeito. Também há a carga meio política, meio premonitória. Os personagens falam do exílio dos argentinos, o que viria a acontecer 13 anos depois do lançamento do livro. Claro que há menções a coisas antigas, algumas que nem mais existem, mas a obra impacta. Ela não envelhece justamente por ter essência moderna, que é permanente. Esse livro vai ser moderno daqui a 30, 40 anos”, garante.
Além do texto original integralmente traduzido por Eric Nepomuceno, a edição da Companhia das Letras inclui cartas relativas à obra, algumas do próprio Cortázar.
Além das cartas de Cortázar, há textos de Haroldo de Campos, Mario Vargas Llosa, Davi Arrigucci Jr. e Julio Ortega sobre o livro. “Escrever é o mais solitário dos ofícios. Cineastas, músicos, pintores podem ver as reações das pessoas a suas obras. O escritor entrega um livro para o editor e sabe-se lá o que acontece. Sobretudo naquele tempo das cartas, é muito reveladora a sinceridade e a mescla rara de singeleza e plena certeza naquilo que se faz, como mostra a correspondência do Cortázar com amigos dele. É algo muito valioso e revelador. É impressionante como ele se abre e se revela”, observa Eric Nepomuceno.
A nova edição de O jogo da amarelinha, com projeto gráfico de Richard McGuire, chega às livrarias em 7 de junho.
O JOGO DA AMARELINHA
. De Julio Cortázar
. Tradução: Eric Nepomuceno
. Companhia das Letras
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. R$ 109,90