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A narrativa tem início com o recebimento do diagnóstico, em julho de 2016. Em seguida, Nirlando vai recuperando a trajetória do avô desde o nascimento dele, em 1887, em Mangualde, distrito de Viseu, na região da Beira Alta, em Portugal, sua infância e a entrada no seminário.
Anos mais tarde, já casados, António e Esméria foram visitar em Portugal o agora famoso Salazar, na época em função vitalícia de presidente do Conselho de ministros. “Um busto de bronze do Salazar sempre andou lá por casa, amparando livros na estante. Não me lembro do vovô falando dele, mas a vovó, sim. Ela ficou encantada em ver o ditador solteirão receber com carinho o colega Tuninho na modesta casa dele em Santa Comba Dão, episódio que cito no livro. O busto do Salazar sumiu, pena. O Fernando Morais queria trocar comigo por duas estatuetas do Che, duas do Mao e uma do Chávez”, revela o escritor.
AQUELA GAROTA...
De perdão, mineirices e missão jornalística
Mas é claro que um romance naqueles tempos e numa sociedade extremamente conservadora iria ter consequências pesadas. António e Esméria decidiram ficar juntos, mas bem longe de Oliveira. O casal foi parar em Alegrete, no Rio Grande do Sul, quase na fronteira com a Argentina.
O avô, pouco tempo antes de morrer, chegou a procurar o então arcebispo metropolitano na capital mineira tentando se “reagregar ao rebanho de Cristo”. “Ele chegou a crer na hipótese de terceirizar a remissão de seu delito. Na sinistra casamata (Cúria) imperava uma criatura igualmente sombria, o arcebispo Antônio dos Santos Cabral. Esse nome, aliás, encorajou vovô a procurá-lo, ele que seria também um António dos Santos Cabral se não tivesse meu bisavô decidido afixar o apelido toponímico – Beirão, natural da Beira – em sua descendência”. Mas Dom Cabral, conhecido por ter se recusado a abençoar a Igreja de São Francisco de Assis, a Igrejinha da Pampulha, por tê-la achado ousada demais, fazendo com que o templo permanecesse por 14 anos proibido ao culto – não se comoveu com o pedido. “Apresentava-se humildemente para tomar a bênção do dignitário da Igreja e se prostrar com toda a humildade perante alguém que poderia lhe conceder a esperança de uma graça divina. Dom Cabral despachou meu avô com a arrogância que lhe serviu, com certeza, pouco tempo depois, de passaporte one way para os quintos dos infernos”, relata Nirlando em um dos capítulos.
VEIA CRÍTICA Ao longo das páginas o escritor vai recordando as experiências pessoais como o nascimento da filha, Júlia, o casamento com a segunda mulher, a jornalista e dramaturga Marta Goes e, sobretudo, as profissionais. O acaso o fez parar diante de uma Olivetti na redação da sucursal mineira do jornal Última hora e o “conduziu ao longo da areia movediça de uma profissão incerta.” A profícua carreira soma mais de meio século e Nirlando – que faz parte de uma geração de ouro no jornalismo – ainda trabalha de casa na revista Carta Capital. “De fato, fomos uma geração privilegiada. No meu caso, o que tinha a dizer sempre expressei nos meus textos. Há um certo desalento hoje, mas o jornalismo tem de deixar de ser o mediador de uma normalidade anormal e voltar a ser a consciência crítica da sociedade”, opina. A relação com Minas também está bem presente no livro, que, para o autor, não deixa de ser um resgate afetivo do mineiro que nunca deixou de ser e do qual se orgulha muito. “O mineiro emigrado, eu escrevi, não vai atrás da Terra da Promissão, sabe que ela ficou para trás. Acho que o que tenho de mais mineiro é saber que o caminho mais curto entre dois pontos não é a linha reta”, analisa.
Mesmo com dificuldade de se comunicar, Nirlando Beirão não deixa de fazer o que mais gosta e sabe fazer: escrever. “As palavras foram me sumindo da fala. Ironia para quem vive delas há mais de cinco décadas. Ainda me comunico por escrito, menos mal”, observa o escritor, que acredita que o maior aprendizado que a doença lhe trouxe foi perder o medo. “Pode parecer arrogante, mas é isso mesmo. Mais importante ainda: estou aprendendo a receber o carinho que nem sei se mereço. O que mais desejo atualmente é aproveitar o dia a dia da melhor forma possível. Passou, espero, aquela fase punitiva do ‘o que eu devia ter feito e não fiz’”, ressalta.
“Um livro expressaria melhor, como diria Camões, a dor que deveras sinto. Cuidei, não sei se consegui, de evitar a autocomiseração, a pieguice” Nirlando Beirão,
escritor
Meus começos e meu fim
Nirlando Beirão
Editora Companhia das Letras (192 págs.)
R$ 49,90
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