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Estado de Minas

Mia Couto apresenta suas reflexões sobre Grande sertão: veredas

O moçambicano define Guimarães Rosa como 'intempestivo criador de mundos'


12/04/2019 09:17

Mia Couto e, ao fundo, a projeção da capa da nova edição de Grande sertão: veredas, inspirada em obra de Arthur Bispo (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Mia Couto e, ao fundo, a projeção da capa da nova edição de Grande sertão: veredas, inspirada em obra de Arthur Bispo (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)


"Trago um abraço por Brumadinho, um abraço por Mariana, um abraço pelo Rio de Janeiro agora maltratado pelas chuvas. De Moçambique trago um abraço que não precisa de motivo para existir." Em tom baixo, diante de uma plateia atenta e reverente que lotou o Sesc Palladium (ingressos esgotados em 50 minutos), Mia Couto cumpriu o anunciado: discorreu sobre Grande sertão: veredas, que acaba de ganhar nova edição, da Companhia das Letras. "Diz-se que um livro só começa a existir quando o lemos pela segunda vez. Confesso que o Grande sertão não foi, para mim, um livro fácil. No início, resisti como quem se apercebe que precisa de reaprender a ler. Aquela língua era e não era a minha língua. Eu já tinha lido os contos de Rosa, mas o Grande sertão era uma outra coisa", revelou o autor de romances como Terra sonâmbula. 

O moçambicano, contudo, fez mais do que falar sobre sua reação ao grande livro de Rosa. Disse trazer um abraço simbólico – e solidário – ao nosso país, "à diversidade da sua gente e à integridade da sua história". "Saúdo o Brasil que sabe celebrar a literatura e que bem se pode orgulhar de ter escritores como Guimarães Rosa", destacou Mia Couto, antes de lembrar que a história brasileira, por diversas vezes, foi alvo de mutilações. "Amputada das memórias da escravatura e do racismo, amputada do genocídio dos índios, amputada da violência contra as mulheres. E que agora está na iminência de ver apagada a memória da ditadura militar", criticou.

A conferência de Mia Couto, na noite de quarta-feira, foi precedida pela apresentação de integrantes do grupo Miguilim, de Cordisburgo (terra natal de Rosa), ovacionado depois da interpretação vigorosa de trechos de Grande sertão. Antes de falar sobre a obra máxima do escritor mineiro, Couto narrou o impacto emocional sofrido ao visitar Beira, cidade onde nasceu em 1955 e viveu até os 17 anos, devastada no mês passado por um ciclone. "Estou a escrever um livro sobre a minha infância e senti uma imperiosa necessidade de rever esses lugares infinitos onde não paro de nascer", contou.

Depois de concluir a leitura do texto que preparou sobre Grande sertão, Mia Couto leu a carta que escreveu quatro meses atrás com outro escritor, o angolano José Eduardo Agualusa, destinada aos brasileiros. "Durante anos, o Brasil foi, para nós, uma escola de sensibilidades, um lugar de infinita inspiração, um lugar de afetos profundos e de integração", lembrou. "É com grande temor que vemos que esse Brasil pode estar em perigo. A tolerância está sendo substituída pelo ódio, o gosto de escutar o outro e integrar a diferença parecem viver os seus últimos dias", alertou: "Estamos com o Brasil que aprendemos a amar e que não queremos perder". E o amor pela cultura brasileira, em especial ao Grande sertão, ficou evidente nas palavras de Mia Couto. "Posso dizer que foi na prosa de João Guimarães que encontrei o retrato mais fiel deste país. Talvez porque a sua intenção não seja a verdade, mas a viagem, essa viagem que Rosa chama de travessia." 
A seguir, trechos da conferência de Mia Couto no Sesc Palladium.


O sabor do adeus
"Fiz uma visita à minha cidade (devastada pelo ciclone). Sobrevoei Beira e confirmei o que sentira desde o princípio: eu estava órfão da minha infância. Fui o último a sair do avião como se receasse não saber pisar aquele que foi o meu primeiro chão. Em criança, não nos despedimos dos lugares. Pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez. Aquela visita dizia o contrário. E eu experimentava o amargo sabor do adeus." 


Da lágrima ao suor
"Abracei meus amigos no aeroporto sabendo que lidávamos todos com uma ferida que era maior que corpo. Eu pensava que os ia consolar. Aconteceu o oposto: foram eles que me reconfortaram. Eles já estavam reerguendo casas, refazendo tetos, reabrindo ruas. Enquanto reconstruíam a cidade, eles se refaziam a si mesmos. A mim faltava-me essa labuta que converte a lágrima em suor." 


O chão devolvido
"No final da visita a Beira, eu pensava: 'vou ao Brasil e falarei, sim, sobre Guimarães Rosa com prova de gratidão para com toda a literatura que nos chegou da nação brasileira'. Rosa já antes me tinha brindado com vozes que nasciam para além do tempo. Ficavam. Agora ele me devolvia o chão que pensara ter perdido. Eis o que Rosa me voltava a ensinar: aquela minha cidade não era apenas um lugar. Era uma entidade viva que me tinha trazido ao colo e me tinha contado histórias."


Lugares de afeto
"Tal como o sertão de Rosa, a minha cidade é mais da palavra do que da terra. Os nosso lugares de afeto são sempre mais da linguagem do que da geografia. Os territórios onde nascemos são, como diz Rosa, esses pastos que carecem de fecho. Agora sei: nenhum ciclone me pode roubar essa pertença."

 
Fronteira, vereda
"A escrita de Rosa recuperou uma infância que já foi a minha e não distinguia fronteira entre o corpo e o mundo. Essa fronteira, essa vereda, nasce muito depois de nascermos. A linguagem comum, a linguagem funcional – essa que Rosa combateu de modo visceral – essa linguagem envelhecida é talvez a mais poderosa lâmina que nos afasta do mundo. 


Monstro morto

"Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo. O que chamamos hoje de linguagem corrente é um monstro morto. A língua serve para expressar ideias, mas a linguagem corrente expressa apenas clichês e não ideias; por isso está morta, e o que está morto não pode engendrar ideias. E esse monstro nos divide e asfixia."


O criador de mundos
"Tudo em Rosa parece feito de contrários, peças de puzzle que não encaixam. Este médico devia incorporar o rigor da ciência frente a um corpo doente. O que ele acabou fazendo foi tratar a alma de um mundo sem alma. Este diplomata que foi chefe da Divisão de Fronteiras dedicou toda a sua vida a abolir fronteiras. Derrubou fronteiras que separam o pensamento do sonho, que separam a poesia da prosa, a oralidade da escrita. Este diplomata do Itamaraty que, nas palavras de Drummond de Andrade, não foi senão um "embaixador de um reino que há por trás dos reinos, dos poderes, reino cercado não de muros, chaves, códigos, mas o reino-reino?". Este poliglota que dominava oito línguas acabou escrevendo num idioma que era anterior a todos os outros idiomas. Esse que foi cônsul brasileiro na Alemanha nazi juntou-se à sua esposa Aracy para salvar judeus das mãos de Adolf Hitler. Rosa reuniu todos estes Rosas por trás desse seu retrato de homem composto, trajando terno e gravatinha que sugeriam tudo, menos esse intempestivo criador de mundos." 


Conversa nos livros
"O Brasil é um espaço de mestiçagens de mundos diversos. A questão sempre foi como colocar em diálogo os que falam e os que escrevem este país. João Guimarães Rosa conseguiu que essa conversa acontecesse nos seus livros. E ele fez isso não tanto pela inovação linguística, mas pela dimensão poética da sua escrita. É na poesia que ele se coloca em diálogo consigo mesmo."


Reverências
"Não se pode esperar que João Guimarães Rosa tenha a mesma popularidade que Jorge Amado. Rosa é um escritor bem mais difícil, mais impenetrável. Contudo, ele marcou profundamente escritores como Luandino Vieira, Ruy Duarte de Carvalho, Ascênsio de Freitas, Ondjaki. Para não falar de mim, que sempre reverenciei Rosa como um dos meus mestres." 


Primeiro contato
"Publiquei o meu primeiro livro de contos, em 1985, muito influenciado pela escrita do angolano Luandino Vieira. Quando confessei essa influência a Luandino, ele me disse: 'Se queres que a linguagem seja um personagem vai à fonte e procura por João G. Rosa'. E foi isso que sucedeu quando, dois anos depois, recebi uma fotocópia de A terceira margem do rio. Eu estava a escrever o meu segundo livro de contos. E nota-se claramente que há um antes e depois na minha escrita."


Linguagem hegemônica
"É evidente que a linguagem cotidiana é absolutamente necessária. Não viveríamos sem ela. O problema é a relação hegemônica que esta linguagem mantém com as outras muitas linguagens que são nossas por natureza e por direito histórico. Nós acabamos sendo funcionários dessa linguagem funcional. E fomos criando fronteiras e muros: os muros não são apenas os de Donald Trump e dos outros Trumps tropicais que governam a partir do medo e da mentira. Fechamo-nos a outros saberes, outros sabores, outros sotaques. Sem querer nos juntamos a uma velha cruzada de dessacralização da terra e da natureza. À nossa volta tudo se tornou cenário. A paisagem ficou muda, cega e sem alma. Essa falsa apropriação do mundo tem um preço: para ser donos, deixamos de ser sujeitos. Para ter domínio, deixamos de ser autores da nossa existência. Acabamos personagens descoloridas de um enredo escuro e pobre." 


Mais milagre que obra

"Dizem que Grande sertão foi escrito em Paris. E faz sentido a pergunta de Drummond: 'Rosa tinha pastos, tinha buritis plantados no seu apartamento?'. O que dali resultou é mais milagre do que obra. Porque ele usou o regional para fazer um texto profundamente universal; brincou com o pitoresco para fazer filosofia; usou a fala popular para fazer uma literatura nova e inovadora." 


O contrabandista
"Riobaldo não é apenas o protagonista-narrador. Ele é um contrabandista entre a cultura urbana letrada e a cultura oral sertaneja. Esse é o desafio que enfrenta o Brasil (e que enfrentam todos os Brasis do mundo). Mais que um ponto de charneira necessita-se hoje de um médium, alguém que usa de poderes para colocar em conexão criaturas de distintos universos. Necessita-se da ligação com aquilo que Rosa chama de "os do lado de lá". Esse lado está, afinal, dentro de cada um de nós."


Grandes inquietações
"Grande sertão: veredas percorre as grandes inquietações da humanidade: o bem e o mal, o sentido da existência, a briga entre Deus e o diabo, o conflito entre a vontade e o destino."


Uma outra lei
"Meus amigos brasileiros asseguram-me que Grande sertão podia ter sido escrito nos tempos de hoje. Com líderes populares sendo assassinados, com fazendeiros e madeireiros invadindo terras indígenas, com a dificuldade de o Estado de direito fazer frente aos jagunços que agora têm novos nomes e novos mandantes. Disparar 80 tiros sobre uma inocente família só pode ser mais que um acidental excesso. Pode ser uma manifestação de uma outra lei que se quer impor à margem de toda a lei." 

Os futuros de Moçambique
"Moçambique é uma nação plural, com várias nações, povos, culturas, e religiões. Essas nações, essas gentes enfrentam hoje o seguinte desafio: todas têm que ser modernas, parecidas umas com as outras, todas devem partilhar de uma mesma grande nação chamada Mercado. Os moçambicanos olham o futuro com desconfiança. Porque esse futuro vai chegando sem pedir licença, o futuro fala uma língua estrangeira, esse futuro não tem tempo. Devia haver futuros, no plural. Devia haver modernidades, cada uma com o seu desenho, a sua cor, o seu compasso. Numa palavra: prevalece em Moçambique um contexto histórico que tem fortes semelhanças com o ambiente vivido no Brasil à data em que Rosa construía a sua obra."

 
Obra de resistência

"Grande sertão é uma obra de resistência. O sertão é erguido em mito para contrariar uma certa ideia uniformizante de um Brasil em ascensão. Rosa não escreve sobre o sertão. O brasileiro escreve como se ele fosse o sertão. Um sertão que se enche de estórias para contrariar o curso da história. O que os novos poderes pedem não é apenas que as pessoas se retirem do sertão. Pedem que o sertão se retire delas. Vivemos em Moçambique esse mesmo confronto de mundos. Rosa coloca os mundos de sertão em diálogo. Em Moçambique, nós precisamos saber que esses mundos e esses tempos podem conversar." 


Ser brasileiro
"Eu fui brasileiro ao ler João Guimarães Rosa. Tal como fui brasileiro ao ler Amado, Machado, João Cabral, Drummond, Bandeira, e tantos, tantos outros. Fui brasileiro ao escutar Chico Buarque, Caetano, Gilberto Gil e muitos outros. A Moçambique chegam-nos, hoje, notícias de campanhas de agressão contra esses artistas, que são insultados como se fossem vagabundos. Apenas o ódio cego justifica esta agressão. Quem assim procede não pode amar o Brasil." 


A poesia de Cordisburgo

"Quando me pergunto por que escrevo, eu respondo: para me familiarizar com os deuses que não tenho. Os meus antepassados estão enterrados no outro lado do oceano. Não partilho da sua intimidade e, mais grave ainda, eles me desconhecem inteiramente. Sempre que escrevo, convoco um tempo sonhado, invento os meus antepassados. Essa reinvenção exige uma perda radical da razão. Exige uma linguagem em estado de transe, uma possessão. Exige a poesia. Quem me trouxe essa poesia foi um mineiro de Cordisburgo."


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