Uai Entretenimento

Mostra aborda a barbárie sob o ponto de vista da arte

Em 27 de janeiro de 1945, o maior campo de extermínio nazista, Auschwitz-Birkenau, foi libertado pelas tropas soviéticas. A data, reconhecida 60 anos depois na Assembleia-Geral das Nações Unidas como o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, encerrou, na prática, um dos genocídios mais emblemáticos e terríveis da história. Registrado em documentos históricos e testemunhos de quem sobreviveu, o fim do pesadelo vivido por milhões de judeus despertou a mente criativa de artistas, que ajudaram a preservar a memória de um dos episódios mais obscuros da humanidade. Dedicada ao estudo dessas narrativas, a pesquisadora mineira Lyslei Nascimento lança Despertar para a noite e outros ensaios sobre a Shoah, uma coleção de reflexões sobre expressões artísticas que mantêm vivas as mensagens sobre o Holocausto.

Professora de teoria da literatura e literatura comparada na Faculdade de Letras da UFMG, Lyslei se dedica, há pelo menos duas décadas, aos estudos judaicos. Um dos aspectos mais delicados desse contexto, o Holocausto se tornou o principal objeto de pesquisas da professora, mas sob a luz de seu campo de atuação literária, a partir das narrativas ficcionais e artísticas inspiradas no estarrecedor fato histórico. Com Despertar para a noite e outros ensaios sobre a Shoah ela oferece ao leitor uma coletânea ensaios e artigos, anteriormente publicados e agora atualizados, que discutem diferentes obras culturais sobre a Shoah, termo traduzido do hebraico como “catástrofe” e usado para se referir ao genocídio judeu na Segunda Guerra.

INTOLERÂNCIA

“Achei que era um momento importante para isso. Vivemos tempos de recrudescimento, intolerância de todo tipo à coexistência de pessoas de religiões e etnias diferentes. Esses temas estão na ordem do dia, e achei que deveriam ser atualizados e republicados num livro.

É uma coleção que estava desperta”, explica a autora sobre a decisão de reunir e relançar suas produções sobre o tema.

Em nove capítulos, ela resgata publicações de escritores estrangeiros, como o israelense David Grossman e o luso-americano Richard Zimler, e de ícones da literatura e poesia nacionais, a exemplo de Jorge Amado e Vinicius de Moraes. Figuras que, independentemente de seu grau de ligação pessoal com o Holocausto, conseguiram capturá-lo em seus trabalhos.

Valendo-se do conhecimento de outros pensadores e teóricos do assunto, Lyslei disseca cada obra, contextualizando a relação do autor em questão com o fato histórico. Amado, por exemplo, “sempre identificado com o imaginário baiano”, como observa a autora, viveu exilado em Praga, na então Tchecoslováquia, poucos anos após o fim da Segunda Guerra, entre 1951 e 1952. Ali, nasceu seu poema Canção da judia de Varsóvia, que versa sobre uma sobrevivente do Holocausto.

Outro tópico é o livro A guerra no Bom Fim, de Moacyr Scliar, a respeito de um garoto judeu que vivia no bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, nos anos 1940, e acompanhava o noticiário da guerra. A autora entende que inspirações como a de Scliar, que nasceu em 1937, quando o conflito europeu estava prestes a começar, e publicou a obra em 1972, têm grande valor na construção da memória. “Daqui a pouco, não teremos mais testemunho de sobreviventes, apenas daqueles que ouviram sobreviventes e dos artistas que interpretaram a narrativa dos sobreviventes”, afirma.

A literatura não é a única expressão cultural que o livro aborda. Um dos capítulos se dedica ao filme Trem da vida (1998), do diretor romeno Radu Mihileanu.
O longa conta uma história, bem-humorada em alguns aspectos, de um grupo de judeus que vive em uma aldeia e planeja enganar os perseguidores nazistas e fugir para a região da Palestina. Outras produções como A lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, e A vida é bela (1997), de Roberto Benigni, aparecem como termo de comparação.

“A arte tem a capacidade de trabalhar com fantasia e criatividade. Obras importantes recriam o episódio, mas não ficam presas ao fato facultado na história. A arte pode avançar na imaginação, ir mais longe e recriar. Depois de 70 anos, revisitar a Shoah talvez só seja possível a partir da arte, da fotografia, do cinema, da literatura”, diz Lyslei Nascimento.

Em relação às diferentes criações artísticas sobre as quais se debruça, Lyslei diz no livro que “a literatura da Shoah não é só uma forma de se estabelecer relação com o passado de um povo que descende de uma tribo perdida do Oriente Médio, mas suprir a distância entre o leitor, seja ele judeu ou não, da sua condição humana”. Segunda ela, “a arte e a literatura sobre a Shoah são, pois, memoriais às vítimas e alerta aos vivos”.



Biblioteca Pública abriga
exposição e ato com velas


Além de estar presente na arte, a memória do Holocausto também existe de forma mais objetiva e documental. É o caso da exposição Shoah – Como foi humanamente possível?, aberta à visitação em Belo Horizonte na Biblioteca Pública Estadual, na Galeria de Arte Paulo Campos Guimarães, até o próximo dia 31. Desenvolvida pelo Yad Vashem (The World Holocaust Remembrance Center – Museu do Holocausto em Jerusalém) e trazida a Belo Horizonte pelo Instituto Histórico Israelita Mineiro (IHIM), a mostra reúne painéis explicativos, histórias pessoais das vítimas, citações, fotografias originais e imagens de artefatos que ajudam a contar a história, numa linha do tempo que mostra a vida judaica na Europa antes e durante o Holocausto, além da liberação dos campos de concentração.

“É uma exposição didática, que mostra a sequência histórica do processo de ascensão do nazismo, da perseguição aos judeus, da discriminação.
E ela tem esse objetivo: uma mensagem de alerta, de luta contra a opressão, contra a discriminação, o antissemitismo, contra o racismo e de respeito às minorias”, afirma Jacques Ernest Levy, diretor do IHIM. Lembrando que os nazistas também enviavam homossexuais, deficientes, adversários políticos e outros grupos aos campos de concentração, ele destaca a importância da memória para a educação das novas gerações.

PERSEGUIÇÃO

 “Hoje vivemos muitas intolerâncias. Houve outros genocídios no mundo e até hoje existem bolsões de perseguições contra vários grupos. Porém, há de se destacar na história que o regime nazista deliberadamente, por meio de lei, quis exterminar o povo judeu. Essa data é para não esquecermos a que ponto chegou o mundo no século passado. A Alemanha, um berço de grandes filósofos, por causa de uma crise econômica permitiu a ascensão de um governo totalitário que levou àquilo tudo. Temos que manter a chama da liberdade, mas sempre atentos para que esses regimes não se instalem em nenhum lugar na Terra, entendendo o que aconteceu no passado, para que novas gerações não cometam os mesmos erros”, afirma.

Amanhã (28), no auditório da Biblioteca Pública Estadual, o IHIM promoverá um ato em memória das vítimas do Holocausto, às 19h30. A cerimônia terá seis velas em homenagem aos cerca de 6 milhões de judeus mortos no genocídio, acesas por sobreviventes ou descendentes de sobreviventes que residem em BH, além de execução de hinos e conversas sobre o tema.

Exposição Shoah – Como foi humanamente possível?
Até 31 de janeiro, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (Praça da Liberdade, 21, Funcionários). De segunda a sexta, das 8h às 18h; sábados, das 8h às 12h. Entrada franca



Despertar para a noite e outros ensaios sobre a Shoah
.
Autora: Lyslei Nascimento
. Quixote %2b Do Editoras Associadas
. (178 págs.)
. R$ 39,90
.