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'Fractais Tropicais': Coletânea de ficção científica reúne exclusivamente autores brasileiros

Um homem alquebrado pelo luto; um jovem pintor em busca de inspirações; um matador de aluguel diante da tarefa de tirar a vida da própria amada. Esses argumentos poderiam motivar histórias comuns, não fosse pelo fato de o viúvo ter uma modificação cerebral para amar incondicionalmente sua mulher que o faz ter impulsos suicidas após a morte dela; o pintor adentrar uma realidade lisérgica desdobrada em formas geométricas; e de o assassino estar em um cenário futurista e tecnológico. Esses são alguns dos contos presentes na coletânea Fractais tropicais (Sesi-SP), que reúne 30 dos melhores autores da ficção científica brasileira.     

No romance 'A cidade & a cidade', de China Miéville, duas metrópoles ocupam o mesmo espaço físico, mas são invisíveis entre si. Quem vive em uma é obrigado a “desver” os edifícios, carros e habitantes da outra. Essa seria uma boa analogia da relação entre a ficção científica e a literatura dita mainstream no Brasil. “Se é ficção científica, a academia não gosta. Se gostou, não vai aceitar que seja ficção científica.
Mas a gente não lê porque tem naves, e sim porque são boas histórias”, afirma Bárbara Prince, editora da Aleph, uma das principais casas de ficção científica no país. “É o gênero que mais tem dialogado com pautas relevantes da realidade hoje.”

Para quebrar essa barreira, o organizador Nelson de Oliveira adotou em Fractais tropicais um recorte histórico e didático. “Inteligência artificial, engenharia genética, robôs sexuais, conexão cérebro-máquina... A ficção científica vem sendo o gênero que trabalha as temáticas mais inquietantes da literatura”, acredita o organizador. A obra abrange mais de meio século de história, desde o patrono da ficção científica no país, Jeronymo Monteiro (1908-1970), até os contemporâneos, como Gerson Lodi-Ribeiro, Alliah e Ana Cristina Rodrigues, autores dos contos citados no início deste texto.

PIONEIROS

Há relatos protoficção científica desde a Antiguidade, como a História verdadeira, em que Luciano de Samósata narra uma viagem ao espaço no século 2. Mas o gênero como o conhecemos hoje foi formatado há 200 anos, com Frankenstein ou o Prometeu moderno, clássico de Mary Shelley.
No Brasil, o primeiro texto do tipo é Dr. Benignus (1875), do luso-brasileiro Augusto Emílio Zaluar (1825-1882). Como nota de Nelson de Oliveira no prefácio, a ficção científica nacional se divide em três “ondas”: uma nos anos 1960, capitaneada pelas Edições GRD, de Gumercindo Rocha Dorea, pioneiro na publicação sistemática do gênero no país; a segunda impulsionada pelos fanzines nos anos 1980 e a terceira, que se desenrola atualmente na internet.

Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), que ocupou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, é uma das pioneiras da ficção científica no país. Em seu conto na antologia A ficcionista (1969), ela imagina uma inteligência artificial avant la lettre, que contém todas as histórias imagináveis, ameaçando a existência de escritores – quase uma previsão sobre big data. Ivanir Calado questiona em O paradoxo de Narciso (1991): o que aconteceria se você pudesse voltar no tempo e se apaixonar por seu eu do passado?.

Em um dos pontos altos do livro O molusco e o transatlântico (2005), Braulio Tavares imagina com lirismo um astronauta com habilidades telecinéticas que se vê capturado por uma espécie inimaginavelmente mais avançada que a humanidade e se torna uma cobaia deste alienígena – cabe ao leitor, pelas memórias do protagonista, decidir se esse destino é bom ou ruim.

Fractais tropicais prova que os autores brasileiros não devem nada aos estrangeiros e sinaliza que talvez a barreira entre a ficção científica e a literatura “séria” seja apenas, como no livro de Miéville, uma questão de miopia. (Estadão Conteúdo)


Fractais tropicais

. Organização: Nelson de Oliveira
. Sesi-SP Editora (496 págs.)
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Preço sugerido: R$ 69,90
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