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Reinaldo Moraes, Autor do 'maldito' Pornopopeia, traz Kabeto de volta, agora ex-junkie

- Foto: Companhia das Letras/Divulgação
Em Maior que o mundo, de Reinaldo Moraes, há dois protagonistas: Kabeto, o escritor com bloqueio criativo, e São Paulo. Os dois estão tão entranhados quanto a memória do escritor, que ele chama de “memória contato”. A vivência de 66 anos na cidade (Moraes tem 68) está impregnada na escrita. Não é só cenário, mas também a forma. E Kabeto é um pouco Moraes. Não tanto quanto o protagonista de Pornopopeia, o romance meio maldito que conquistou a crítica e uma legião de leitores em 2009, mas de uma forma mais sutil. “Tudo o que escrevo, todos os personagens são eu mesmo, ou acordado ou dormindo”, admite.

Kabeto é um escritor ex-junkie à procura da primeira frase para dar início a um romance, quase desculpa para falar do universo que os leitores de Pornopopeia conhecem bem: o submundo paulistano, do Baixo Augusta, nesse caso, da Boca do Lixo, das prostitutas, das drogas e do sexo descompromissado. Maior que o mundo nasceu de uma provocação na mesa de bar.
O cineasta Roberto Marquez pediu a Moraes a continuação de Pornopopeia em forma de roteiro de cinema. Ele topou, escreveu o material, combinou ceder apenas os direitos para o filme e conservou o domínio editorial, porque viu ali a possibilidade de desenvolver um romance.

Na época, Moraes estava estacionado na escrita da história sobre um bicheiro cujo rumo adquiriu contornos excessivamente metafísicos. “Pensei que ia desentortar aquele roteiro e em dois, três meses, teria um livro divertido. Mas comecei a fazer e percebi que rubrica não é literatura, nem mesmo diálogo é literatura, porque pressupõe o ator. Roteiro não tem dinâmica literária”, conta.

O que deveria durar alguns meses levou cinco anos para ser concluído. E ficou enorme: 1,2 mil páginas. Muita coisa mudou, novos personagens surgiram e o protagonista passou de junkie cinquentão a ex-maluco, ex-cocainômano.
“Um cara maneiro, que vive sozinho”, avisa Reinaldo. Como ficou muito grande, a solução foi transformar a saga de Kabeto em trilogia. O segundo volume está praticamente pronto e será lançado no fim de 2019.

Moraes garante que o livro virou outra coisa. Ele ainda não viu o filme, mas gosta de pensar na convivência das duas histórias parecidas, mas diferentes. “O engraçado é que o Beto Marquez também não sabe no que resultou o livro. Talvez seja um dos raros casos em que o livro, o romance, trai o filme, não é o filme que trai o romance. Um tipo de sinergia que espero que seja divertida”, repara.

Apontado como um dos melhores autores marginais do Brasil, Moraes desconfia um pouco da etiqueta. Afinal, é publicado por uma das maiores editoras do país e seus romances têm repercussão considerável.
“Sou o cara marginal mais dentro do sistema que pode haver. O marginal mais da boca de cena que existe”, brinca. “Porque tem umas orgias, umas putarias, aí você acha que é marginal. Mas o texto, a fatura mesmo, não tem nada de marginal. No melhor sentido que poderia haver, escrever como Chico Alvim e Chacal, de quem gosto muito. Mas isso não é aquilo.”

A literatura marginal, ele esclarece, era fruto de um contexto repressivo e opressivo dos tempos da ditadura militar. “Buscava a linguagem da fresta, não ser explícito porque tinha censura. E tinha uma coisa meio de produção e circulação dos livros que era marginal, tudo feito com mimeógrafo mesmo”, lembra. Com o resultado das eleições presidenciais, ele admite um novo cenário. “Fiquei brincando que, quando o Bolsonaro ganhou, voltou o clima de ditadura militar, essa mentalidade retrógrada e completamente totalitária, fascistóide.
Vai acabar surgindo de novo a velha contracultura, que tava meio aposentada. Os mimeógrafos vão sair do armário pra fazer poesia marginal e vender de mão em mão. E vai ter uma revolução musical do tipo tropicalista, uma resistência cultural. É uma coisa a ver”, especula.

Entrevista
Reinaldo Moraes,
escritor

“O convívio entre luz e trevas vai se manter”

O que vai surgir, em termos de linguagem literária, nestes tempos de pós-verdade, fake news e virada do mundo para a direita?

Isso remete à ideia que volta e meia aparece de tentar usar os meios digitais para criar uma linguagem digital. Na literatura, seria você fazer, por exemplo, ficção interativa em que o leitor possa influir. Outro dia, li sobre o americano que criou o aplicativo para escrever, você dá uns empurrões e ele cria frases interessantes, meio poéticas, meio malucas. Esse campo experimental, essa coisa digital, é prato cheio para experimentalismo, mas isso vai saindo fora da literatura. Não sei, talvez tenha uma visão um pouco convencional de literatura com o texto, uma coisa que depende do discurso. É um tipo de visão. De repente, você tem um tipo de literatura que vai contra isso, como o concretismo, que foi um pouco uma rebeldia contra a linhagem discursiva.
Mas deu no que deu, virou uma espécie de igrejinha, quase uma peça de museu.

Hoje em dia, existem igrejinhas na literatura contemporânea do Brasil? 

Gozado, nunca tive o que chamam de vida literária, de conviver com escritores e tal. Lia, tinha amigos que gostavam de ler, mas não era uma confraria de escritores. Mais ou menos em 2000, 2002, tinha um bar, o Mercearia, de São Paulo, na Vila Madalena, reduto boêmio ao qual eu ia desde 1984. Fiquei um tempo sem ir lá, depois voltei e tinha mudado o perfil do público. Começavam a aparecer muitos escritores, os da geração 1980: Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Andrea del Fuego, Marcelo Mirisola, que eu levei. De repente, sem perceber, estava em mesas de escritores. Qualquer hora que aparecesse lá, tinha um sentado. Mas não era no sentido de criar um linguagem em comum: cada um era muito diferente. Durou uns quatro anos. Ele não existe mais, virou um bar de universitários que lota a calçada.

Grandes livrarias fecham as portas, editoras reduzem quadros e catálogos… Há uma crise do livro no Brasil?

Não poderia escolher melhor hora pra lançar um livro, né? Não sei. Por um lado, as pessoas veem isso como exemplo de má gestão. O grupo Cultura comprou um monte de coisas, depois teve que vender, a Saraiva também. Não sei se dá pra atrelar a crise das livrarias à crise da literatura, apesar de ser uma indagação instigante. Temos que tentar ver se, no fundo, é uma crise da literatura, do interesse das pessoas por ficção, apesar de estarmos falando de livros de modo geral. Não tenho esses parâmetros. Às vezes, leio coisas dizendo que ficção tá vendendo cada vez menos, incluindo até Harry Potter e Cinquenta tons de cinza. E depois leio o contrário, de que tá aumentando a venda de livros e o interesse. Aí se multiplicam essas Flips regionais pelo Brasil. Então, é difícil fazer essa leitura. Talvez o negócio tenha mudado de perfil e os caras da Cultura e da Saraiva não tenham sacado.

Em certo momento, o personagem de Maior que o mundo reclama que não pode falar nada hoje porque logo é acusado de machismo. Isso te preocupa enquanto escritor?

Sim, acho que esse negócio foi surgindo nos últimos cinco anos. O cara é cinquentão, a roda de amigos tem metade da idade dele, ele é um pouco um dinossauro moral. Isso começou a colar no personagem. Tenho um pouco disso também. Acho que todo homem da minha idade, sobretudo, e com o mínimo de autocrítica, deve estar neste exato momento pensando na piada que costumava contar e não faz mais sentido, no relacionamento com as mulheres, que era um e não é mais.

“É de graça sonhar com o triunfo do iluminismo sobre o obscurantismo”. Não parece que agora isso vai ser cobrado?

Era das Trevas, né? Poxa, não sei. Acho que vai conviver. Da mesma forma que o iluminismo surge num momento de terror no século 18, antes da Revolução Francesa, com aquelas figuras autoritárias, uma aristocracia que desprezava completamente o povo. Isso convivia com Diderot, com Voltaire, com as ideias liberais que, naquela época, podiam ser consideradas marginais. O convívio entre luz e trevas vai se manter. Não vejo uma campanha em que o cara vai conseguir restituir a censura e começar a prender, torturar gente. Neste momento, estou batendo na madeira. Mas acho que não vai. Sei lá, vamos virar uma Venezuela de direita, dominar os juízes e tal?

MAIOR QUE O MUNDO
. De Reinaldo Moraes
. Companhia das Letras
. 454 páginas
. R$ 74,90
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