Antes de se tornar artista, Artur Pereira (1920-2003) trabalhou na lavoura, foi lenhador, carvoeiro, pedreiro e carpinteiro. Passava dias no mato e, certa vez, dormindo em uma cabana improvisada, uma onça caiu do telhado sobre ele. Os dois se assustaram e o animal fugiu para o mato. É possível especular que a experiência lhe marcou e, provavelmente, foi determinante para que a figura do felino se tornasse recorrente nas esculturas que passou a criar.
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A grandeza da obra desse artista poderá ser apreciada pelo público em Belo Horizonte na exposição Fauna e fé, que tem abertura amanhã, às 19h, no Centro de Arte Popular Cemig. A mostra reúne 50 trabalhos, todos de colecionadores mineiros, e teve curadoria de Antônio Carlos Figueiredo e Tadeu Bandeira. A preciosa seleção tem esculturas de um vasto período, da década de 1970 até o fim dos anos 1990, o que permite ao espectador observar diversos elementos que caracterizam a obra do artista.
BARROCO A síntese formal e o uso constante de um único bloco de madeira no qual entalhava suas formas é aspecto singular do trabalho de Artur Pereira. As peças isoladas se contrapõem a colunas, presépios e galhadas (algumas delas representando caçadas).
O artista Ricardo Homem, responsável pela curadoria da retrospectiva de 2009-2010 no Instituto Moreira Salles, destaca essa presença do Barroco nas peças de Artur Pereira. “A vida inteira ele viu as colunas das igrejas, as coisas da movimentação do Barroco e traduziu isso nas composições com os bichos”, observa. O curador aponta também a forma curva e contorcida dos animais, em que rabos e galhos formam volutas típicas da composição barroca.
O movimento dos animais, a circularidade das colunas, que estabelecem ritmos de presença e ausência nos vazados da madeira, a expressividade dos bichos, que demonstram altivez e certa nobreza, refletem a capacidade única de Artur Pereira lidar com o que o cercava e traduzir em formas. O vigor das esculturas desse artista causou espanto em Tunga e fez Amilcar de Castro afirmar que o homem de Cachoeira do Brumado era um artista muito melhor do que ele. Pela capacidade de inventar um universo telúrico próprio, como assinala José Alberto Nemer, a obra de Artur Pereira é de uma potência artística digna dos grandes escultores brasileiros. De sua pequena Cachoeira do Brumado, mostrou sua aldeia e se tornou universal.
ENTREVISTA// JOSÉ ALBERTO NEMER
Artista, professor e crítico de arte
“É uma celebração da natureza”
Natural de Ouro Preto, o professor e artista José Alberto Nemer foi, provavelmente, o maior responsável pela divulgação da obra de Artur Pereira.
O senhor foi um dos primeiros a ter contato com a obra de Artur Pereira, ainda na década de 1960. Como foi essa descoberta?
Em fins da década de 1960, numa loja de artesanato de Ouro Preto, eu e minha amiga Lilli Correa de Araújo vimos duas aves com as asas abertas, esculpidas em madeira. Eram diferentes de tudo que aparecia por ali. Compramos as peças e fiquei sabendo que eram de um “artesão” (como o tratavam na época) de Cachoeira do Brumado. Fui até lá e conheci o Artur Pereira. Fiz encomendas de outras esculturas.
Sua tese de doutoramento aborda a arte popular brasileira. Como artista e professor, como o senhor vê as singularidades e especificidades desta produção no Brasil?
Principalmente a partir do Modernismo, assistimos no Brasil a uma busca por identidade cultural. Muitos artistas, digamos, intelectualizados, passaram a incorporar em suas pesquisas uma preocupação com nossas raízes, tanto na música como no cinema, no teatro, na literatura, nas artes plásticas. A essa questão que inquieta os intelectuais, a arte popular já responde espontaneamente. Seu aspecto genuíno e sua qualidade estética garantem à produção popular uma cara brasileira. Vivo mergulhado na arte popular desde sempre, não só por essas razões, mas pela surpresa que costuma trazer. O interesse do circuito mais amplo de arte pela produção popular é fenômeno recente. Equivocadamente, considerava-se o artista outsider um artesão, como se sua obra não tivesse autonomia poética. Felizmente, muitos dos artistas ditos populares já estão hoje definitivamente incorporados ao panorama da arte brasileira.
No aspecto temático, é notória a relação do trabalho de Artur Pereira com a vida rural e a natureza.
Com as premissas contemporâneas, há uma tendência do homem do campo em se desenraizar, num claro processo de deculturação. Frequentemente, ele perde suas raízes e não as substitui por outras ou – o que é mais duro – adota outras, alheias ou bastardas. Artur Pereira é o exemplo raro de um artista que viveu e criou toda uma obra a partir de sua experiência rural. Além do mais, era um homem de tocante integridade moral e profundamente adaptado ao seu meio ambiente e à comunidade à qual pertencia. A força e a originalidade de seu trabalho mostram isso.
Como vê o aspecto religioso na obra do artista?
Essa perfeita adaptação ecológica de Artur Pereira incluía, claro, a prática religiosa. Católico, ia à missa e participava dos ritos e das festas. Apesar de ter feito várias esculturas representando o nascimento de Jesus, sua obra ultrapassa a representação cristã. É uma celebração da natureza.
Em termos formais, é possível identificar elementos barrocos reinventados em composições escultóricas bastante próprias. Como o senhor situa os aspectos formais da obra de Artur Pereira?
Em sua aparente singeleza, a obra de Artur Pereira encerra uma grande complexidade estética. Ela é síntese de um imaginário telúrico. Tendo nascido e vivido num vilarejo do Ciclo do Ouro, há também formas “bebidas” nas igrejas antigas que ele frequentou ao longo da vida. Um tronco esculpido por Artur Pereira, carregado de frutas, aves, bichos, não teria nascido daquelas colunas salomônicas que ostentam os altares barrocos? Outro exemplo: em seus presépios, a manjedoura que abriga o Menino é, ao mesmo tempo, uma gruta rústica e um nicho de oratório, encimado por um arco colonial. Onde, nos altares, se vê o pelicano, Artur coloca o galo. É um artista que bebeu na natureza e reinventou-a na arte.
ARTUR PEREIRA – FAUNA E FÉ
Centro de Arte Popular Cemig (Rua Gonçalves Dias, 1.608, Funcionários, (31) 3222-3231). Terças, quartas e sextas, das 10h às 19h; quintas, das 12h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 12h às 19h. Entrada franca. Até 6 de março.