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MUDANÇA DE PARADIGMA

Pesquisador lança livro que derruba mitos e muda a percepção sobre a economia de Minas


"Não tenho dúvida em afirmar que, em vez de ser uma economia com um único setor, no final do século 18, Minas Gerais tinha a economia mais diversificada de todo o Brasil”

“A população escrava de Minas era maior do que a de qualquer outro lugar do Brasil em qualquer época da história, maior do que qualquer uma das colônias açucareiras inglesas do Caribe”

“A economia mineira era bastante próspera e não entrou em decadência quando diminuiu a produção de ouro, como rezava a historiografia clássica”

“O que questiono é a centralidade que a historiografia costumava atribuir ao setor aurífero na economia do século 18 mineiro, o chamado Ciclo do Ouro”

No início de 1808, o Brasil se preparava para receber dom João VI e toda a sua corte. De capital da colônia, o Rio de Janeiro se transformaria em sede da Coroa. Diante da notícia da chegada da família real portuguesa, o ouvidor-geral da comarca do Rio das Mortes publicou um edital no qual convocava os vassalos da região a “mostrar o quanto a estimamos, por todos os modos que nos forem possíveis”, o que significava fazê-lo por meio de doações de “gados, toucinhos, carnes de porco, arroz, queijos, farinha de trigo, açúcar, farinha de mandioca, feijão e tudo mais que parecer necessário”.

Minas Gerais já abastecia o mercado interno e exportava produtos para o Rio de Janeiro. A capitania atendeu ao apelo com prontidão, o que revela que “havia abundância e prosperidade em uma época na qual, segundo a historiografia tradicional, tudo era miséria e ranger de dentes na capitania de Minas”, afirma o economista e pesquisador Roberto B. Martins.

O argumento mencionado é apenas um dos vários mitos históricos desfeitos pelo autor de Crescendo em silêncio – A incrível economia escravista de Minas Gerais no século 19. O livro será autografado nesta segunda-feira (26), a partir das 19h30, na Academia Mineira de Letras. Resultado de mais de 40 anos de pesquisa, a obra apresenta a tese de Martins defendida nos Estados Unidos em 1980 e uma revisão historiográfica sobre o tema, concluída este ano.

Repercussão

 Rigoroso, Martins afirma que, desde que terminou a tese, passou a reexaminá-la, desejar aprimorá-la, corrigir certos pontos e desenvolver outros. Seu trabalho teve grande repercussão – o que inclui algumas polêmicas –, pois “mexeu em coisas que estavam paralisadas, irrigou-as e fez brotar coisas novas”, diz.
Nessas quatro décadas, “surgiram muitas evidências, muitos trabalhos e conhecimento novos sobre a história de Minas e da escravidão”, aponta.

Obviamente, o pesquisador acompanhou com atenção os desdobramentos de seu esforço acadêmico. Optou por publicar no mesmo volume a tese original, “com todos os defeitos causados pelo ‘estado da arte’ e pela imaturidade do jovem pesquisador”, por se tratar de um documento produzido em época e condições específicas, mas também por incorporar um post-scriptum de 230 páginas. “Achei que seria interessante revisitar meu próprio trabalho com um olhar crítico, criticar a mim mesmo, 40 anos depois.”

Na segunda parte do volume, o autor incorpora dados estatísticos, novidades científicas e interpretações formuladas a partir de seu argumento fundamental, o qual representou uma mudança de paradigma na historiografia sobre Minas Gerais.

Você, leitor, deve estar se perguntando: Mas, afinal, qual foi a descoberta tão extraordinária feita por Martins? Para compreendê-la, no entanto, é preciso relatar certos antecedentes. “Até o final dos anos 1970, os grandes autores da história econômica do Brasil, como Roberto Simonsen e Celso Furtado, diziam que, no século 19, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, a história da escravidão se mesclava inteiramente com a história do café”.

A formulação foi refutada pela tese do historiador mineiro e provocou não apenas a revisão e a relativização do modelo interpretativo, mas apresentou Minas Gerais como um caso único e específico na economia escravista nas Américas.

Ele relata que, “desde a época da escravidão até nosso tempo, todos os contemporâneos, comentaristas e historiadores diziam que o regime escravocrata estava diretamente relacionado à grande lavoura monocultora e exportadora de commodities para o mercado internacional”.

Até então, as teorias vigentes postulavam que a economia escravista, em todo o continente americano, “só era viável com o sistema de monocultura, seja os engenhos de açúcar no Nordeste brasileiro e no Caribe, as plantations de algodão no Sul dos EUA, ou nas grandes fazendas de café do Sudeste do Brasil”, observa.

A interpretação em relação ao período era – e continua sendo – bastante válida para quase todas as regiões americanas baseadas na mão de obra escrava. Porém, Martins conseguiu demonstrar que a economia de Minas Gerais não seguia esse modelo. “As fazendas mineiras eram menores, suas escravarias eram pequenas e não eram especializadas na produção para exportação. Eram muito diversificadas internamente, produzindo todo tipo de alimentos.
O destino dessa produção não era o mercado mundial, mas sim os mercados domésticos, da própria província e da capital do Império.”

O caso de Minas Gerais no século 19 derrubou o dogma de que a produção escravista estava, necessariamente, relacionada à monocultura “não só por ser uma economia diversificada, policultora e multissetorial, mas também por ser uma economia voltada para os mercados domésticos, e não para os mercados internacionais”.

Atualmente, sabe-se que existiram alguns outros exemplos de diversificação econômica (nas Antilhas, no Rio Grande do Sul), mas nenhuma se compara à grandeza ocorrida em Minas Gerais. Para o professor, “é o único caso conhecido, em toda a história da escravidão na América, de uma economia de grande porte, baseada na exploração uma grande população cativa, diversificada, sem monocultura, sem exportação para o exterior e independente, autônoma e ancorada em seu próprio mercado”.

A constatação da especificidade da economia na Minas Gerais do século 19 incentivou pesquisas mais detalhadas sobre o tema e revisões historiográficas. Mais do que isso, muitos mitos a respeito de nosso passado caíram por terra. A maior das falácias – das quais se desdobram outras – é a decadência econômica na capitania após o chamado Ciclo do Ouro.

De acordo com Martins, não houve uma “onda” de alforrias de escravos, cujos senhores, supostamente, decidiram libertá-los porque a produção das fazendas não compensava sustentá-los. E considera lenda que a mão de obra escrava tenha sido transferida para a produção cafeeira em outros estados. “Muito pelo contrário, durante o período formativo do setor cafeeiro, e ao longo de todo o século 19, Minas foi o maior importador de escravos africanos em todo o Brasil”, reforça o pesquisador.

GATILHO

A guinada realizada por Martins na interpretação a respeito do tema se deu a partir de um dado específico. No final da década de 1970, ele e seu irmão, o historiador Amílcar Martins, estudavam nos EUA, embora em universidades e regiões distintas. “Um dia, Amílcar me ligou de madrugada, meio assustado, dizendo que descobrira no censo de 1872 (o único recenseamento completo da população brasileira realizado no período escravista) que a grande maioria dos escravos de Minas Gerais – cerca de 75% deles – não residia na Zona da Mata, que era a região cafeeira da província”, relembra.

“Não acreditei”, afirma.
Todos os estudos afirmavam que, durante o Império, no Sudeste brasileiro, a escravidão e o café eram inseparáveis. “Disse a ele que conferisse todas as contas, que deviam estar erradas.” Amílcar confirmou o achado e não demorou muito para que ambos percebessem que se tratava de “ouro puro”, pois havia em Minas “alguma coisa inteiramente diferente do enredo contado pela história tradicional”.

A partir desse dado, Roberto Martins passou a vasculhar todas as evidências e dados disponíveis. “Foram aparecendo grandes diferenças entre a economia de Minas e as do Rio de Janeiro e de São Paulo. Minas Gerais tinha uma enorme quantidade de escravos, maior do que qualquer outro lugar do Brasil em qualquer época da história, mas sua agricultura não era baseada em grandes fazendas monocultoras especializadas na produção para exportação, como a das verdadeiras províncias cafeeiras.”

Seu estudo, defendido na Universidade de Varnderbilt, em Nashville, em 1980, trouxe uma descoberta que revolucionou a visão sobre a história de Minas e do continente. Hoje, Martins tem sua contribuição reconhecida, sobretudo, por ter inflamado o debate sobre o tema. “A tese revelou uma identidade própria do período provincial mineiro, gerou interesse, recolocou Minas na agenda de trabalho sobre a escravidão, despertou pesquisas originais e coleta de dados primários em arquivos”, diz o pesquisador, ciente de que “surgiram críticas e debates importantes sobre vários pontos, que estão fervendo até hoje, e ferverão por muito tempo”.

Apesar de saber exatamente o impacto e a importância de seu feito, afirma se sentir feliz ao ver um jovem discutindo seu trabalho e o criticando com atrevimento. “É isso que deve ser feito, é assim que as coisas se mexem e o conhecimento avança. Gosto muito mais disso do que do aplauso puro e simples. Foi isso que fiz naquele longínquo 1980. Mudei a interpretação da história de Minas.
Agora, outros vão me criticar, vão pesquisar muito e vão mudá-la outra vez. Não há mais lugar para cardeais e oráculos inatacáveis. Como todo conhecimento novo, minha tese é um ponto de partida, não um ponto de chegada. Porque isso não existe, graças a Deus.”


CRESCENDO EM SILÊNCIO – A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Roberto B. Martins
Icam/ABPHE (630 págs.)
R$ 70
Lançamento hoje, às 19h30, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466), com o livro vendido a R$ 50.