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Ensaio fotográfico registra apartamentos de vizinhos que não se conhecem

Entre tantos outros fenômenos, a disposição física das grandes cidades é responsável por uma relação ambígua de proximidade, que encanta e inquieta seus moradores. Com edifícios residenciais enormes, colados uns aos outros, seus habitantes acabam íntimos de quem nem sequer se sabe o nome, observando suas rotinas, hábitos e objetos, a cada olhada pela janela. A curiosidade pelos desconhecidos do cotidiano inspirou a gaúcha Letícia Lampert, formada em artes visuais e design, com mestrado em poéticas visuais, a desenvolver o projeto fotográfico Conhecidos de vista.


Letícia enquadrou 50 apartamentos da região central de Porto Alegre, onde a distância do vizinho da frente é curta o suficiente para que se conheçam detalhes da vida de quem mora ali. Vencedor do Prêmio Pierre Verger de fotografia em 2013, o trabalho ganhou edição em livro, lançado neste mês pela Editora Incompleta.


São 84 fotografias em 152 páginas. A publicação em formato sanfona mostra, na primeira folheada, os retratos da vista externa de cada apartamento. No sentido contrário estão os registros de seus interiores, com pequenos depoimentos em texto dos moradores. Com a identidade preservada, eles descrevem o que observam no cotidiano, às vezes sem querer, e, em outros casos, por excesso de curiosidade.


“Tem uma senhorinha que mora ali no prédio da frente, uma senhora de idade, e eu me preocupo com ela. Todo dia, de manhã, eu olho se ela abriu a janela.

Até já comentei com ela. Ela achou graça, mas eu fico mais tranquila, assim vejo que está tudo bem. Se um dia ela não abrir a janela, eu vou me preocupar. Aí é porque alguma coisa aconteceu”, relata o morador identificado apenas como L., do apartamento 22.

RELAÇÃO - Caminhando pelas ruas da região central da capital gaúcha, Letícia notou que, em ruas mais estreitas, as janelas de edifícios opostos ficavam a uma distância muito próxima e havia a possibilidade de entrar nos condomínios. “Conversando com os moradores e perguntando se conheciam o vizinho, comecei a ficar impactada sobre o que diziam. Eles não conheciam as pessoas e sabiam tudo da vida delas. Achei muito bonita essa relação.
Não é uma vista ideal, com outro prédio tapando sua visão, mas cria-se uma situação de boa vizinhança, existem relações afetivas. Por isso escolhi esse formato de pequenas histórias”, explica.


A fotógrafa conta que sua inspiração veio da percepção da oposição entre o espaço público e o privado. “Eu já vinha trabalhando com cidade e paisagem urbana e comecei a pensar na oposição entre esses espaços – o quanto são diferentes, ainda que divididos só por uma parede. Então comecei a ter uma ideia de fotografar dentro e fora de lugares”, diz. Segundo Letícia, a proposta inicial era “mais formal, registrando o mesmo ângulo, como se fossem duas faces de uma moeda”. Por isso as imagens mostram um mesmo recorte objetivo, horizontal e frontal, da fachada dos apartamentos vistos por fora e por dentro.


Nas fotos, observamos, de um lado, prédios antigos, com acabamentos descascados, bandeiras dos clubes gaúchos penduradas e algumas roupas secando. Do ponto de vista dos interiores, os objetos entram no quadro, permitindo ao leitor imaginar o perfil do morador, que nunca aparece na imagem. Os personagens ouvidos por ela relatam situações variadas do contato com a intimidade alheia.

Há o mais solitário, que observa de forma mais sensível a família que faz as refeições junta. Outro se mostra incomodado em expor a própria intimidade e também em ver detalhes da vida alheia, mantendo sempre a cortina fechada, mas, mesmo assim, ciente do que se passa no domicílio em frente.


A situação já inspirou histórias no cinema, como o clássico Janela indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock. Mas é do argentino Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, que o projeto fotográfico se aproxima mais. Letícia usou o filme, que aborda o isolamento virtual e afetivo na Buenos Aires de hoje, na introdução de sua dissertação de mestrado. “É uma situação muito presente para quem vive na cidade grande. Há um sentimento de opressão, do receio do outro, do desconhecido e, para mim, ver esse lado afetivo foi um respiro. É a chance de não perceber só pelo lado negativo. Há essa brecha. Muita gente que vê o projeto se identifica e me fala ‘você deveria ir na minha casa”, conta a fotógrafa.

 

 

Conhecidos de vista
De Letícia Lampert
Editora Incompleta
(152 págs.) R$ 70

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