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Ato de artista que picotou sua obra após leilão levanta questões sobre o mercado da arte

Enigmático, autor de telas e grafites dotados de críticas políticas certeiras e cultuadas em todo o mundo, o artista britânico Banksy faz de sua persona um mistério. A verdadeira identidade deste pseudônimo é desconhecida e, mesmo em redes sociais, suas postagens não revelam a face que acompanha o gênio criativo. Seu último feito, durante o leilão de um de seus trabalhos, em Londres, gerou controvérsias no universo das artes plásticas.

Uma reprodução em tinta acrílica e spray de Girl with baloon (Menina com balão), um dos murais mais famosos de Banksy, foi arrematado por 1,042 milhão de libras (R$ 5,18 milhões) na noite de 7 de outubro, na Sotheby’s House. Após a venda, a obra se desprendeu da moldura, passando por um triturador, o que danificou boa parte da imagem. O público presente, formado por colecionadores e profissionais do mercado da arte, reagiu boquiaberto com o ocorrido.

Logo na sequência, o suposto acidente se relevou um ato premeditado pelo próprio artista. Em vídeo postado em seu perfil no Instagram, ele explicou que, há alguns anos, construiu um aparato escondido no quadro, que seria acionada e destruiria a obra caso ela fosse leiloada. Na legenda, consta a frase “O desejo de destruir também é um impulso criativo”, atribuída ao mestre Pablo Picasso.

Com a ação, Banksy fez uma crítica à mercantilização da arte e à prisão do processo criativo ao poder monetário. Mesmo quem realiza o intermédio entre as obras e o mercado não poupa elogios ao manifesto do britânico.
“As ações do Banksy costumam ser superpertinentes ao trabalho e à crítica que ele faz. Acredito que ele tenha atingido seu objetivo: gerar incômodo. As pessoas passaram a questionar se a obra era o desenho ou se só ficou completa após a ação”, observa a galerista Flávia Albuquerque.

Responsável pelas exposições da Celma Albuquerque Galeria de Arte, ela conta que seu filho, estudante em Sotheby’s, estava presente no evento e lhe enviou um vídeo antes que a notícia fosse divulgada pela imprensa. “Achei incrível. Foi a última obra a ser leiloada e, mesmo com lances importantíssimos feitos na noite, só se ouve falar do que Banksy fez”, diz Flávia, atentando ao fato de que, durante o leilão, a pintora Jenny Saville se tornou a artista viva mais cara da História. Propped, seu autorretrato nu, de 1992, foi vendido por 10,8 milhões de euros (R$ 47,23 milhões).

Ela nega que o ato tenha sido um desserviço para o mercado da arte. Ao contrário, dá margem a uma discussão complexa e oportuna.
“Deve-se trabalhar com o valor de mercado de forma que esse fator não ultrapasse a emoção da arte e o projeto do autor. Quando um artista atinge valores absurdos – caso desses leilões internacionais – costuma-se ter com a obra uma relação puramente mercadológica. Não se pensa o que aquele trabalho transmite e como se inscreve no projeto de seu autor.”

“Em um leilão, o que está em mente, para os compradores, é o valor da obra no mercado e o quanto passará a valer após a batida do martelo. Agora mesmo, há muita gente interessada em saber se o desenho do Banksy passará a valer mais ou menos, após o ocorrido. Muitos têm deixado de lado o principal, que é a discussão levantada pelo artista”, acrescenta a galerista.

Para Thierry Ehrmann, presidente da Artprice, especializada em cotações do mercado da arte, o preço atual da obra está provavelmente acima dos 2 milhões de euros (R$ 4,37 milhões). “Banksy nos lembra que, mesmo dentro de uma prestigiosa casa de leilões, sua arte é efêmera”, acrescenta Ehrmann. O jornalista francês Mikaël Faujour, da revista Artension, diz que “os restos dessa destruição se preenchem com novo significado, novo valor, que aumentam seu valor financeiro”, disse. “Banksy não quis destruir sua obra completamente”, disse Arnaud Oliveux, especialista da casa de leilões parisiense Arcurial.”Fazendo isso, seu trabalho se tornou algo mais, algo icônico, graças também ao burburinho nas redes sociais”, completou.

Na quinta-feira, a Sotheby’s informou que a obra foi adquirida por uma colecionadora europeia, sem revelar a sua identidade.
Anunciou que neste sábado (13) e domingo (14) Girl with baloon, que agora passou a ser chamar Love is in the bin (O amor está no lixo), ficará em exposição aberta ao público. A casa de leilões divulgou ainda que a compradora manteve a intenção de adquirir a obra. Alex Braczik, chefe de arte contemporânea da Sotheby’s declarou ao The Guardian que “Banksy não destruiu uma obra de arte, mas criou uma. Love is in the bin foi a primeira obra criada durante um leilão”

LEGITIMIDADE 

Um dos pontos centrais da arte do Banksy é a resistência das pessoas em reconhecer o grafite como arte. Nas palavras de Flávia, tal preconceito tem mão e contramão. “Nos tempos em que Banksy era underground – por mais que ele não tenha deixado de ser, no meu entendimento –, ele era muito mais respeitado pelos artistas de rua em comparação a hoje, em que é reconhecido internacionalmente. Da mesma forma que existe a discussão se o grafite é arte, os grafiteiros discutem se a repercussão junto ao mercado reduz a legitimidade de um trabalho”, aponta.

Representante da arte urbana em BH, Paulo Nazareth nega que um grafite perca seu valor quando deixa os muros da cidade e parte para o interior de grandes galerias. “O próprio Basquiat (1960-1988) foi um importante artista de rua, cujos trabalhos, hoje, estão em telas que ocupam importantes lugares. O grafite não perde nada com isso, o que muda é o comportamento dessa arte”, afirma.

Para ele, nesses casos, o grafite se torna objeto de desejo – como ocorre com Baksy – e mesmo as intervenções feitas na rua levam à especulação imobiliária. “É possível que pessoas queiram morar próximo de onde há grafites de Baksy.
Ele já desperta a cobiça de um público conhecedor da História da Arte, mas também de gente interessada unicamente no valor financeiro do que ele faz.”

O mineiro lança um olhar questionador sobre a polêmica atitude do britânico. “Foi uma ação válida, mas, ao mesmo tempo, vejo como um negócio, uma estratégia. É como um jogo, em que ninguém perdeu 1 milhão com aquela jogada. Ao contrário, ações como essa alimentam o ‘mito Banksy’”, opina. Para Nazareth, o anonimato é a mola precursora do sucesso do britânico. “Banksy aparece muito por ser essa figura incógnita, esse mito sem rosto. É parte da característica do grafiteiro, dos artistas de rua e ativista político que faz seu trabalho com pseudônimo.”

Nazareth acrescenta fatores à discussão evocada pelo artista de Bristol. “Quantos braços e quanto suor no Hemisfério Sul foi necessário para ‘construir’ aquele milhão de libras? Qualquer pagamento é uma transferência de valores. O ocorrido, em Londres, me faz pensar o quanto da riqueza europeia vem da exploração da mão de obra mineira, ocorrida durante o Ciclo do Ouro, e dos africanos escravizados que viviam aqui. Para criticar o mercado, é preciso pensar nesses lugares”, questiona.

ONIPRESENTE 

Para o artista plástico Elvis Almeida, Banksy se destaca por chamar atenção de um público não especializado à discussão sobre valoração da arte.
“Acompanho o trabalho dele desde o início, por utilizar técnicas antigas e características marcantes desta arte de protesto que é o estêncil. Além disso, foi um cara muito importante por levar pessoas que não estão envolvidas nesse sistema a pensar um pouco mais sobre arte”, afirma o carioca, cuja produção recente está em exposição na Dotart Galeria.

De acordo com Elvis, o ato na Sotheby’s foi coerente com a linha artista seguida pelo britânico. “É uma nova estratégia de alguém que está sempre colocando em dúvida o valor da obra de arte, uma nova obra foi construída naquele momento”, opina. O artista lembra que, em ação anterior, Banksy contratou um ator para se caracterizar como pintor e vendeu seus desenhos originais como se fossem réplicas em uma feira para colecionadores.

Sobre a crítica certeira ao mercado, atenta que a realidade de Banksy está muito distante da sua, restrita ao circuito nacional. “Aqui, as galerias ainda são colaboradoras dos artistas. Não tenho noção de como o mercado londrino ou nova-iorquino possa ser inescrupuloso”, afirma. “Sei que o mercado e as galerias nunca serão suficientes para o sonho de um artista. Nossas necessidades não se limitam apenas à venda, ao consumo. A venda possibilita a continuidade da produção, mas há outras formas de mostrar nossa arte que não sejam nas galerias comerciais”, completa.

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