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Curador Rodrigo Moura resenha 'Paralisia', de André Nigri

Jofre, o protagonista de Paralisia, é filho do privilégio. Ele se arrasta pela vida sem pensar na sobrevivência material, resolvida na herança que recebe dos pais. Rentista como boa parcela da elite brasileira, não tem que trabalhar, não tem emprego, não tem carreira. Vaga pelo passado, tenta construir um futuro e se agarra às relações afetivas como a pedaços de precipício, que condena ao próprio tombo. Quando sofre uma decepção, parte pra próxima.


Tudo no romance de estreia de André Nigri, experiente jornalista literário com passagens por veículos como O Tempo, Jornal da Tarde e Bravo!, gira em falso. Não há esperança ou redenção. Depois de ser deixado pela esposa, Jofre cede a um surto de alcoolismo. É a parte inicial da narrativa.

As sucessivas garrafas e os livros na estante, que não consegue terminar, são sua companhia. A ex-mulher é a destinatária de e-mails cheios de raiva misógina e autocompaixão, normalmente não enviados. As amizades lhe escapam por entre os dedos. Na noite de Natal, contrata uma prostituta para cear com ele.

Do encontro com a acompanhante, que comparece com a filha pequena, nasce a sequência do enredo, na terceira parte do livro. Entre esta e a primeira, conhecemos melhor o protagonista, suas referências familiares, sua história desinteressante. São depoimentos em primeira pessoa das ex-mulheres, o diário do pai adúltero, a historieta romântica secreta da mãe. A alternância dos focos narrativos dá vazão à prosa exuberante do autor.

O pano de fundo da sociedade brasileira, descortinado desde o ponto de vista da elite econômica, o filia a uma linhagem de escritores que acharam nela sua matéria literária – pensamos em Machado de Assis, em Zulmira Tavares Ribeiro, autora cara a Nigri, em Chico Buarque.
Jofre não diz, mas sabe que sua condição privilegiada nada depende de si, mas da perpetuação de relações de classe perversas e desiguais. Seu pai é da casta dos juristas abastados, os donos do poder.

Assim como esses autores, Nigri manipula um mordaz sentido de ironia em relação à consciência de classe. Por meio dela sentimos, em alguma passagem mais impiedosa, o fardo sentencioso que impõe a seu anti-herói. São reveladoras nesse sentido as construções sintáticas que ecoam os relatos pseudoeróticos kitsch das revistas masculinas (“em dois ou três minutos, no máximo, sentado no vaso sanitário, vê o líquido de seu desejo escorrer entre os dedos”, é o resumo da masturbação que segue à tensão sexual despertada no encontro com a amiga da enteada adolescente), os requintes pequeno-burgueses na descrição do preparo das refeições ou ainda as referências literárias que salpicam o romance como um travo de classe. É severo, no entanto, o tratamento final dado à escrita.

Quando abandona a cidade para viver num sítio, o sexismo de Jofre se acirra. Ali a sexualidade machista se torna foco ainda maior dos interesses do narrador. Cuidando de um hotel de cães e vendo outro casamento derreter, Jofre destila seu ódio de classe ao caseiro, em quem outrora tivera um amigo, agora alcoólatra e abusador. Entre os dois, apenas o pudor separa a fantasia do ato.
Um imagina; o outro faz. Seria uma condescendência de classe deixada escapar pelo autor? Obviamente não se deve esperar uma única e inequívoca moral. A quarta e última parte do livro traz uma possível resposta. Na concentração de sua prosa, na arquitetura novelesca enxuta e nas frases exemplares de seus variados registros, encontramos em Paralisia uma estreia pela qual valeu a pena esperar.

 

 

*Rodrigo Moura é editor, curador e crítico de arte

Paralisia
• De André Nigri
• Reformatório
• 184 páginas
• R$ 39
• Lançamento nesta quinta-feira (13), às 19h, Livraria Quixote (R. Fernandes Tourinho, 274. Savassi. Tel. (31) 3227-3077.

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