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Imigração é tema de mostra do pernambucano Cuquinha, na Funarte

Trabalho de Cuquinha se insere na discussão levantada sobre o poder do capital - Foto: Isidro Martins/DivulgaçãoO artista plástico Lourival Cuquinha, pernambucano de 43 anos radicado em São Paulo, notou a onipresença de imigrantes no Centro das grandes cidades durante uma temporada vivendo na Inglaterra. A constatação inspirou o projeto Transição de fase, pautado na interação com ambulantes que deixaram seus países de origem para tentar a vida em metrópoles como Londres, Paris e São Paulo. A exposição, que investiga a relativização dos valores humanos e traz um olhar sensível sobre a imigração, é composta por fotografias, objetos e instalação sonora e está aberta à visitação até outubro, na Funarte.

Cuquinha reconhece que o método com que abordava seus personagens era pouco convencional. Para convencê-los a participar do projeto, o artista comprava todo o produto que o ambulante vendia em troca de duas fotografias de corpo inteiro, frente e verso. Em outros casos, ele comprava apenas um produto pelo dobro do valor e fotografava o rosto do ambulante em questão. Na exposição, as fotos aparecem impressas em uma superfície que revela o valor pago ao personagem, junto ao produto adquirido por Cuquinha.

Um exemplo é a imagem de um homem nascido na Costa do Marfim que vende réplicas da Torre Eiffel em frente ao Museu do Louvre, em Paris. Notas costuradas formam a imagem desse imigrante em uma grande flâmula que remete à nota de US$ 100 – valor pago a ele por toda a mercadoria, também disposta na mostra. Outras das imagens capturadas por Cuquinha estão impressas sobre cobre.

“A exposição é uma espécie de museu dos produtos de ambulantes.
Um museu contemporâneo do que é vendido nas ruas das cidades, um mapeamento do que faz imigrantes sobreviverem pelo mundo. Tem de tudo: desde artesanato e muamba chinesa a falsificações de bermuda Adidas”, define Cuquinha.

Ele revela um forte grau de identificação com os personagens retratados. “Em Londres, trabalhei de várias coisas e fui táxi bike. Também era um trabalho ambulante, apesar de vender um serviço, e não um produto. Fui percebendo uma apropriação pelos imigrantes, não só geográfica, mas antropológica, nos centros dessas grandes cidades. Pensei, então, em trabalhar a valoração desse lugar.”

RADIOGRAFIA Ao mesmo tempo em que leva a um pensamento crítico sobre a mercantilização dos indivíduos, o projeto se insere nessa discussão ao utilizar o poder do capital para o fazer artístico. “É uma crítica, mas é também uma radiografia.
Vivo nesse mundo e não me isento. Como em outros trabalhos, tenho esse método de comer por dentro, de utilizar os próprios mecanismos para os expôr e superá-los”, afirma Cuquinha.

“Meus trabalhos não lidam só com o dinheiro, mas com a relativização de valores tanto econômicos quanto sociais, morais e estéticos. O dinheiro é uma convenção, que todo o mundo aceita como valiosa, é uma isca para essa poética.”

Como em boa parte de sua obra, Cuquinha reflete a manipulação dos indivíduos pelo sistema e pelo poder monetário. Ele cita o filósofo britânico Bertrand Russell, que em seu livro O elogio ao ócio (1935), expõe dois conceitos de trabalho: o primeiro consiste na modificação da posição de corpos na superfície da Terra; o segundo é o ato de mandar que outras pessoas executem o primeiro.

“Apesar de suas subjetividades e do livre-arbítrio, os imigrantes integram um mandato mundial. Ao mesmo tempo em que são autônomos, tomam a decisão de ir para outro país tentar a sorte, é o sistema que os empurra de um lugar para outro no mundo”, opina o artista.

ALTERIDADE A imigração é o grande escopo de Transição de fase, segundo seu criador. Para Cuquinha, a exposição amplia e humaniza essa discussão tão latente em todo o mundo. “As obras trazem o senso de como essas pessoas sobrevivem em meio aos motores capitais. São trabalhos que agregam, também, pela alteridade dos imigrantes em cada uma das fotos.
Aqui em São Paulo, quando passamos pela Praça da República, habituamos a ver vários senegaleses. Esse trabalho entra mais no indivíduo, na existência de cada um”, aponta.

Em instalação sonora, é possível ouvir depoimentos de ambulantes entrevistados por Cuquinha. “Sinto a exposição como uma espécie de púlpito para quem quiser falar. Quem for à exposição poderá ouvir outros pensamentos, além dos próprios.” Muitos dos que falam não foram fotografados, nem negociaram seus produtos com o artista. Foi o caso de Hortense Mbuyi Mwanza, que nasceu no Congo e foi viver em São Paulo. Ela traça um profundo panorama sobre a receptividade brasileira não só por ser imigrante, mas por ser refugiada. “Ela, que saiu do Congo para não ser morta, faz uma análise global da imigração e também das situações no Brasil e no Congo”, adianta Cuquinha.

O projeto é enriquecido com uma ação coordenada por Carolina Santana, que promove troca de cartas entre o público da exposição e pessoas que vivem no Senegal. Trata-se de parceria com uma escola local, mediada por um senegalês que vive em BH. “Da mesma forma que conheci essa leva de imigrantes, os visitantes também terão contato com o universo deles, por pessoas que vivem no país onde alguns deles nasceram”, diz Cuquinha.

 

CONVENÇÕES O artista nota que o questionamento das convenções é o que perpassa toda a sua obra. “Para conhecer uma sociedade, estude o Código Penal.

Até o crime é uma convenção. Pense no homicídio: não é crime se for cometido por um Estado que aceite a pena de morte. Até esse, o mais radical ato, depende da situação em que se matou”, opina.

Tal linha artística já o levou a situações controversas. Durante residência em Paris, Cuquinha criou a Art traffic, que consistia na confecção e venda de colares feitos com pedras de haxixe. A arriscada criação se mostrou uma obra de arte muito popular, que o levou para expor na Alemanha e na Holanda, além de passagens pelo Rio de Janeiro e por Recife. “Comecei a viajar com o colar no peito e não gerava qualquer suspeita, porque ninguém imaginava que alguém seria tão cara de pau de andar com pedras de haxixe no peito. Vendia por um preço mais caro que uma pedra de haxixe, mas mais barato que uma obra de arte”, revela.

Em certa ocasião, Cuquinha foi parado por agentes na fronteira entre França e Suíça. “Eles me perguntaram: ‘Você quer que te libere porque é arte?’. Respondi: ‘Não, é arte e é crime. Uma coisa não isenta a outra, não são fatores excludentes’”, lembra Cuquinha, que acabou tendo um papo conceitual com os agentes locais e, mesmo com a ameaça de ser extraditado, teve apenas o seu material de trabalho apreendido.
“Não seria honesto dizer que, por ser arte, posso fazer o que quiser. Ela está inserida em um contexto”, completa.

TRANSIÇÃO DE FASE
Exposição do artista plástico Lourival Cuquinha. Funarte (Rua Januária, 68, Centro. (31) 3213-3084). Visitação de quarta a domingo, das 14h às 21h. Até 7 de outubro. Entrada franca.

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