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Fernanda Montenegro diz que Congresso é brutal

Grande dama do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro registra sua carreira no livro Fernanda Montenegro - Itinerário Fotobiográfico, que será lançado nesta sexta (24), em Belo Horizonte. “O que está no livro é talvez metade do material que se perdeu pelos anos. São 75 anos nessa vida. Imagine você! Como o Sesc quis generosamente editar essa minha trajetória, fomos buscar nas gavetas, nas malas, nos caixotes”, conta a atriz, única brasileira a ser indicada ao Oscar.

Registro da atriz aos 17 anos - Foto: Acervo Fernanda Montenegro
Fernanda não esconde sua preocupação com o país –“Acho que já chegamos no topo, no absoluto do obscurantismo e da intolerância” – e com o processo eleitoral em curso – “Não vejo o Brasil, vejo uma desorganização política enorme” – e sua decepção com os candidatos aos cargos públicos – “Esses candidatos estão voltados para o poderio de Brasília, do Congresso”.

Embora aviste um cenário tenebroso, Fernanda é otimista: “Há uma desilusão, mas o tempo existe e uma hora isso tudo muda”. Sobre a morte, diz que ela não a encara. “Deus me livre ficar ali encarando, olhando. Sou um ser muito vivo, mas não ignoro que ela exista. Quando vier, veio e, se possível, me leve de costas”.

Amanhã e domingo, Fernanda Montenegro volta ao Sesc Palladium para leitura dramática do livro Nelson Rodrigues por ele mesmo, de Sônia Rodrigues.
“Nelson é um memorialista à altura de Pedro Nava, o autor mais importante do teatro brasileiro, um cronista esportivo único. Não há grupos de teatro, cursos de teatro no Brasil em que Nelson não esteja.

A convite do Estado de Minas, o secretário de Estado da Cultura, Angelo Oswaldo, a colecionadora Priscila Freire, os atores Inês Peixoto e Leonardo Fernandes, a empresária Angela Gutierrez e o diretor Pedro Paulo Cava endereçaram perguntas a Fernanda Montenegro, que ela responde a seguir.

Mãe e filha posam para foto - Foto: Acervo Fernanda Montenegro


Fernanda, querida, um dia fomos a Ouro Preto juntas e eu te levei para conhecer o teatrinho da cidade, joia barroca do século 18. Você ficou encantada, quis pisar no palco, se emocionou. Por que Minas a emociona?

(Angela Gutierrez, colecionadora e presidente do Instituto Cultural Flávio Gutierrez)

Angela, querida! Nós nos conhecemos há tantos anos. Privei com sua tia, sua mãe. Voltei a Ouro Preto tantas vezes, mas me lembro do dia especial com você. Inclusive fiz Dona Doida, de Adélia Prado, nesse extraordinário teatro, que acho um referencial de existência de teatro nas Américas.

Com muito prazer devo dizer a você que Minas está na minha história. Meus avós maternos vieram da Itália como imigrantes e foram levados para as fazendas de Minas Gerais. A primeira brasilidade que chegou a eles foi o mundo de Minas Gerais. E pela vida afora, me lembro de meus avós, a casa de meus bisavós, onde o viver à mesa, o que na maioria dos dias se comia, era a herança da mesa mineira. Quando chego a Minas, estou praticamente em casa. Tenho parentes morando aí como resultado dessa imigração, dessa união em torno desse estado tão bonito e tão somatório da nossa cultura.

Quem você destaca entre os novos autores teatrais do Brasil? Há uma nova geração de dramaturgos? Há grupos de grande importância no interior mineiro, como Ponto de Partida, em Barbacena, e Teatro da Pedra, em São João del-Rei, verdadeiras escolas de artes cênicas. Como você vê essas trincheiras de resistência no teatro da atualidade?

(Angelo Oswaldo Araújo Santos, secretário de Estado da Cultura de Minas Gerais)

Angelo, querido! Somos amigos há muitos anos também. Nosso ponto de encontro mais forte foi em Ouro Preto.
Você me honra muito fazendo essas perguntas. Você me pergunta sobre novos autores teatrais. No Rio, me lembro do Jô Bilac, por exemplo. Não sei do movimento de autores Brasil afora, porque há uma crise de produção de teatro, há uma crise de encenação no teatro brasileiro, há uma crise cultural em torno do teatro. Grupos como Ponto de Partida, Teatro da Pedra e outros que existem pelo Brasil de resistência, sim, em catacumbas, porque não há nada, ninguém mais vive de teatro. Todos nós fazíamos teatro por amor ao processo de estar em cena e diante de alguém, falar para alguém e saber que alguém quer nos ver, nos ouvir. Agora, como cultura neste momento, até uma cultura geral, estamos em total ausência e decadência. Você ouve esses candidatos, chega-se a dizer que cultura tira o prato de comida do pobre. Olha que horror! Isso é novo no pensamento anticultural brasileiro. Com a idade que estou nunca tinha ouvido isso: que a cultura é contra a comida de um pobre.
É um crime dizer uma coisa dessas. E se diz até como ganho político, de proposta política. Quero dizer a você que é preciso que se resista das catacumbas possíveis. E não tem o mais novo lutando para seguir na sua vida de artista de palco, não. Para todos nós que temos nomes está uma vazante geral. Não há desilusão. Há uma crença absoluta nisso que a gente faz por uma vocação irresistível. São trincheiras, sim. Espero que essa vazante, essa ausência de responsabilidade cultural para com o nosso país, que isso tenha um fim. Do contrário, como vamos existir como nação, se não temos cultura num plano visto, num plano trabalhado, num plano ampliado, embora tenha um neologismo aí ou uma redundância?

 

- Foto: Editora Sesc/Divulgação 

 

O teatro brasileiro já enfrentou incontáveis crises em que parecia morrer.

Nenhuma tão grave como esta de agora. Não é só uma crise de público, mas de intolerância, diferenças estéticas e políticas intransponíveis, ausência de uma dramaturgia consistente, tentativas fundamentalistas de recriar a censura, gerações que não se encontram nem conversam. E a pior de todas as causas: a desesperança, a indiferença e o desencanto que se instalaram na sociedade brasileira como um todo e nas artes de maneira muito particular. Estamos no CTI, agonizantes e respirando por aparelhos. Desligamos tudo ou vivemos de forma vegetativa? Até quando? O que acha que podemos fazer para além da resistência com que insistimos em exercer nosso ofício? Reinventar o teatro?
Meu carinho a você. Obrigado.

(Pedro Paulo Cava, dramaturgo)

Caro Pedro Paulo, a sua pergunta é dolorosa, porque a resposta não é imediata. Infelizmente, na nossa pele, nós sabemos disso. Agora há que resistir, há que sobreviver e há que gritar, que reivindicar e não se apavorar, porque não vamos desaparecer. Um país sem cultura não é nem país. É uma fronteira. Um país sem cultura não tem caráter, não é uma nação. Agora, o Congresso que temos atualmente é um Congresso brutal, são homens brutais, primários, de uma vivência totalmente não presente no campo cultural. Mas acho que, um dia, esse Congresso poderá ser mudado, espero. E venham outras gerações com pensamentos e outra sensibilidade que façam desse nosso país algo mais vivo, mais carnificado, mais honesto, mais artístico. Por que não? Não tenho medo dessa palavra. Que o saneamento exista, que o socorro nos hospitais também exista. Juro a você: nós não temos nada disso porque não temos homens públicos que entendam e que vivam o processo cultural da nossa gente, do nosso pensamento, do nosso sentimento de brasileiros.

Fernanda, de que ponto você parte para a construção de um personagem? O que você precisa encontrar primeiro nele pra começar a compor?

(Leonardo Fernandes, melhor ator de teatro em 2016 pela APCA com o espetáculo Cachorro enterrado vivo)

Querido Leonardo, sei que você é um ator experimentado, de talento, com uma história, premiado. Você não é zerado no processo de como se comportar diante de um personagem. Sua pergunta é ampla. Precisaríamos estar juntos até para trocar ideias. A construção de um personagem para um ator depende do personagem. É o personagem que vai provocar um caminho de chegar até ele. Há um código primeiro, que é buscar a razão da dramaturgia desse personagem. Agora, isso é uma conversa, eu acho, para gente da área de palco. Talvez eu não tenha mais nada para ensinar a você, a não ser dizer a você: coragem!. Cada texto que a gente encontra é um susto, porque é um mergulho no outro e, por mais códigos que você tenha, você vai de acordo com sua intuição, com o momento que você vive, até com seus problemas particulares, suas glórias particulares. A cada dia, a sua agonia. A cada personagem, a agonia desse personagem e também nossa agonia diante desse personagem com a agonia dele. Um grande abraço.

“Há uma crise de produção de teatro, há uma crise de encenação no teatro brasileiro, há uma crise cultural em torno do teatro”

“Um país sem cultura não é nem país. É uma fronteira. Um país sem cultura não tem caráter, não é uma nação. Agora, o Congresso que temos atualmente é um congresso brutal, com homens brutais, primários”

“Cada texto que a gente encontra é um susto, porque é um mergulho no outro. A cada dia, a sua agonia. A cada personagem, a agonia desse personagem e também nossa agonia diante desse personagem com a agonia dele”

Querida Fernanda, no seu belíssimo monólogo baseado na obra de Simone de Beauvoir, Viver sem tempos mortos, você diz estas palavras: “O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos”. Hoje, revendo sua vida pública e privada através desses registros fotográficos, você consegue pensar em algum momento em que foi necessário romper com o passado para seguir adiante?
(Inês Peixoto, atriz do Grupo Galpão)

Inês, acho que todo passado te mostra uma situação, a favor ou contra, mas que você traz com você e de uma certa maneira isso vai se acumulando. A cada dia, volto a dizer, a sua agonia. Agora, o passado que você traga com você – aceitando ou não o seu passado –, ah! ele é material para você, sim. Material para você como gente, como cidadão, como artista, como ser humano comum, até, como não?, para um ator. Cada dia que você aguenta, que você suporta, que você acrescenta tudo que é modalidade de sentimento. É uma pergunta bonita a tua. O passado nos condena, mas como ajuda. Diz uma frase comum: não se vive sem passado. E a cada segundo já é um passado. Agora mesmo, o que acabei de falar já é passado. Pode se jogar fora, mas, mesmo quando se pensa que joga fora, ele está lá, ele vai com você.

Qual a maior vitória da sua vida?
(Priscila Freire, ex-diretora do Museu de Arte da Pampulha)

Priscila, querida, nem ponho como vitória, mas é o seguinte fato: Fernando Torres e eu fomos casados 60 anos, tivemos dois filhos. Durante muitos anos, perto de 30 anos, quase sempre não estávamos nos fins de semana com eles. Não estávamos nos períodos de férias, porque vivíamos do teatro. Cruzamos este país sem parar. À noite, não ficava com meus filhos. Precisávamos dar conta de uma profissão até para sobreviver, até para ter uma mesa, um teto... Então, sempre tive muito problema de que... não é que preferisse o teatro, era que não tinha como dar conta desse lado maternal que todo tratado psicanalítico diz que a gente tem que estar, tem que ver, tem que ouvir, tem que somar... E, para surpresa da nossa vida – minha e de Fernando –, os nossos filhos vieram para nosso meio, para nossa profissão. Nanda (Fernanda Torres) é atriz. Claudio Torres é diretor de cinema, de séries. Vivem dos seus ofícios, são respeitados e nos damos de uma maneira muito madura, muito amorosa, muito quente, muito próxima. Não é vitória. Apesar de todo um complexo de comportamentos, de como se deve criar nossos filhos,  essa nossa profissão é uma profissão que tem seus horários, tem suas ausências de festas familiares. Ter meus filhos na mesma área, para mim, é um conforto. Um conforto enorme. Se é vitória? Não diria essa palavra, mas foi o que me veio à cabeça quando você me fez essa pergunta.

“Durante muitos anos, perto de 30 anos, quase sempre não estávamos nos fins de semana com eles. Não estávamos nos períodos de férias, porque vivíamos do teatro. Cruzamos este país sem parar. À noite, não ficava com meus filhos. Precisávamos dar conta de uma profissão até para sobreviver, até para ter uma mesa, um teto...
Fernanda Montenegro, atriz
 

Fernanda Montenegro – Itinerário fotobiográfico

Edições Sesc (500 págs.), R$ 160. Lançamento nesta sexta (24), às 19h30, no Grande Teatro do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046). Retirada de ingressos a partir das 12h, mediante doação de 1 quilo de alimento não perecível para o projeto Mesa Brasil.

Fernanda Montenegro apresenta Nelson Rodrigues por ele mesmo
Sábado (25), às 21h, e domingo (26), às 19h. Grande Teatro do Sesc Palladium. Ingressos: Plateias I e II: R$ 30, Plateia III: R$ 20..