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Saiba quem são e como funciona o trabalho dos narradores de audiolivros

O ator Paulo Betti também enveredou pelos audiolivros como o 1808, de Laurentino Gomes - Foto: Divulgação/Ubook

A atriz Joana Caetano não havia se dado conta do potencial de sua voz, até que uma diretora de teatro chamou sua atenção para isso e a indicou para fazer um trabalho no mercado de audiolivros. Joana gravou O diário de Anne Frank, o relato da menina judia escrito durante a Segunda Guerra Mundial, entre junho de 1942 e agosto de 1944

“Já conhecia o livro, mas é bem diferente na hora de narrar. Como é um diário, a leitura não pode ser exatamente interpretativa. É a Anne falando de si mesma. E era preciso transmitir a angústia que ela e a família estavam vivendo, tentando se esconder dos nazistas”, diz. A gravação das 352 páginas levou um mês e meio, e a pronúncia de nomes e expressões em alemão recebeu atenção especial. “Tive que treinar bastante isso, porque não ia soar nada bem pronunciar algo errado”, diz a narradora.

Embora o trabalho exija técnica e disciplina, o narrador não fica isento de se emocionar com o livro, o que é outro aspecto a ser administrado. “Teve momentos em que realmente tive que dar uma parada para respirar e retomar a concentração”, conta Joana.
Marta Ramalhete, gerente de produção do Ubook, plataforma de audiolivros por streaming que tem em O diário de Anne Frank um dos títulos mais ouvidos de seu catálogo, contou a Joana Caetano que, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro no ano passado, uma visitante desatou a chorar em público enquanto ouvia o livro num dos totens instalados pela empresa no ambiente da Bienal.

“Mesmo com todo aquele tumulto, a senhora conseguiu abstrair e entrar naquele universo. Além de a trama ser tocante, a narração emocionou. Acho importante dar esse feedback, para que o profissional saiba que está no caminho certo e fez um trabalho benfeito”, afirma a gerente.

Ao longo dos quatro anos de atividade do Ubook, Marta Ramalhete teve contato com cerca de 300 profissionais, entre dubladores, locutores, repórteres e atores. Nesse universo, pouquíssimos haviam tido contato com audiolivros. “É um mercado novo para todo mundo e é apaixonante como tudo o que envolve a voz. Além de ter um timbre adequado e dicção perfeita, o hábito da leitura é fundamental. O bom narrador tem que desaparecer.
Quem tem que estar em evidência é a voz”, diz ela.

 

Duda Baguera narra audiolivros da editora Mundo Cristão - Foto: Ana Cristina Varão/DBvoz.com/divulgacao
Experiente nos palcos, nos sets de filmagem e nos estúdios de TV, o ator Paulo Betti já há algum tempo vem emprestando sua voz a obras como a trilogia do escritor Laurentino Gomes sobre a história do Brasil (1808, 1822 e 1889). “Levei tudo da minha experiência como ator para a narração”, diz Betti. “É um trabalho difícil e não consigo fazer mais do que três horas por sessão, porque exige muita concentração. Tenho que interpretar o texto de primeira, fazendo a ideia chegar até o ouvinte. Dividir e pronunciar bem as palavras, tenho que entender o que estou lendo, senão o ouvinte não se liga”, descreve o ator, que aponta o tom exato da leitura como o maior desafio. “Como dizer aquelas palavras? De forma solene? Coloquial? Qual é o tom de cada livro, de cada página, de cada capítulo, de cada frase? Mas é tudo fascinante.”

 

 

 

A seleção dos narradores de audiolivros tem que ser criteriosa, porque cada publicação requer um tipo de voz e de narração. “Há livros que pedem algo mais formal; outros, mais solto. Há histórias que ficam melhor com uma voz feminina ou mais madura.

Outras pedem uma leitura mais didática e jornalística. E ainda há histórias que têm recursos como a sonorização”, diz Marta Ramalhete. O processo de produção de um audiolivro envolve também um revisor da narração, que verifica se o texto foi falado da forma correta, se há erros de pronúncia ou sotaque exacerbado.

Flávio Carpes ajudou a criar um curso para qualificar profissionais de audiolivros - Foto: Márcia Carvalho/divulgacao 


“O texto que o narrador lê é exatamente o que está no livro; não há nenhuma adaptação. Por isso, tudo o que causa estranheza no leitor não pode entrar. Daí a importância do revisor. O leitor tem que mergulhar na história; não pode parar e ficar pensando no narrador”, comenta a gerente de produção. Ela afirma que a palavra-chave, quando se trata de audiolivro, é credibilidade. “Independentemente de ser ficção ou não, o narrador deve incorporar o autor, suas ideias. Nada pode soar fake.”

CURSO Foi por perceber um mercado em expansão que Marta Esteves e o dublador, locutor, professor e narrador de audiolivros Flávio Carpes criaram em junho passado um curso para qualificar profissionais de audiolivros. Em outubro, eles promoverão outra edição do curso, que é ministrado em dois sábados, com 16 horas no total.

Flávio Carpes atua no mercado de locução desde 1984. Em 2015, passou a gravar audiolivros. Hoje, tem 28 livros gravados no currículo.

Diferentemente do que fazem muitos de seus colegas, Flávio não costuma ler os livros antes de entrar em estúdio. Ele diz que sua decisão não se deve apenas à falta de tempo – há obras com até mil páginas, além dos livros em série –, mas tem a ver com a vontade de não estragar a surpresa. “Sei que há essas recomendações de ler antes, mas acho que tem um encantamento quando você entra em contato com o livro pela primeira vez e é isso que tento passar ao leitor. Tem sido uma experiência maravilhosa fazer parte disso. Livro é algo fantástico. A gente sempre aprende. O grande lance é fazer dessa profissão não apenas um ganha-pão, mas um prazer para a gente e, principalmente, para quem está ouvindo.”

Paulo Betti também enfatiza o aspecto do aprendizado relacionado a essa atividade. “A história do Brasil é tão rica e surpreendente.
Às vezes eu ficava abismado com o que estava lendo. Aprendi muito”, diz o ator.

 

 

NICHO CRISTÃO

Desde 1965 no mercado editorial, a Mundo Cristão decidiu embarcar nos audiolivros há aproximadamente um ano. Já são 20 títulos que abordam questões religiosas, espiritualidade e até obras clássicas de domínio público. “Percebemos que não dava para ser apenas uma publicadora de livros de papel. Tínhamos de ser uma provedora de conteúdo também no mundo digital, com os e-books, e no áudio”, afirma Renato Fleischer, diretor da Mundo Cristão Fleischer prevê “um longo futuro” para os audiolivros, por sua praticidade. “Mais do que atingir um público com alguma deficiência visual, ele tem conquistado todo tipo de pessoa. Quem está no trânsito, quem não tem muito tempo de ler, alguém que está em viagem. Muita gente já está preferindo o audiolivro.” O principal narrador da editora é Eduardo Costa Mendonça, mais conhecido como Duda Baguera. Ele trabalha com a voz há quase 30 anos e começou a ter experiência com audiolivro quando morava nos Estados Unidos, num momento em que a tendência não havia aportado no Brasil. “A voz é um universo gigante e cada uma das áreas – dublagem, locução, narração – tem suas especificidades”, aponta. “No caso do audiolivro, você precisa ser a voz na cabeça do leitor, mas, ao mesmo tempo, não aparecer.” Dada a carência de cursos na área, Duda diz que esse é um ofício que se aprende na prática. “Quanto mais você faz, mais você se especializa”, aponta o narrador, que enxerga no audiolivro outro benefício além da ampliação do mercado aos profissionais da voz. “Num país como o nosso, que não tem tanto interesse pela leitura, ouvir o livro pode ser um caminho para formar leitores.”

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