Conceição Evaristo costuma dizer que, assim como escrever, publicar é um ato político. O racismo estrutural da sociedade brasileira se reflete também no mercado editorial e a dificuldade de publicar quando se é mulher, negra e escritora é uma realidade. Graças a um trabalho de formiguinha, no qual a coletividade é fundamental, a situação mudou desde que Conceição começou a publicar, há 28 anos. Ela ser homenageada em dois eventos literários este ano é fruto dessa costura que intelectuais negras vêm tecendo ao longo dos anos. Em Brasília, a autora mineira será homenageada no Livre! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, que vai ocupar os parques da cidade em agosto. No próximo dia 27, ela recebe homenagem da Casa Libre & Nuvem de Livros no evento Leitura, gesto político, que será realizado durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Homenagens tardias para uma carreira que, por conta do preconceito, começou com atraso.
Leia Mais
Editoras mineiras independentes participam da programação paralela da FlipEscritora alerta que, apesar de avanço do movimento, ainda há desinformação sobre o feminismoPrêmio Leda Maria Martins homenageia produção negra nas artes cênicasCineasta Cacá Diegues é eleito imortal pela Academia Brasileira de LetrasConceição Evaristo é forte candidata a ocupar cadeira número 7 da ABLCristovão Tezza chega às livrarias em dose triplaExposição na CâmeraSete reúne imagens das últimas quatro décadas do regime comunistaPara comprar barco, casal de índios do Xingu vende cerâmica milenar em BH
A autora lembra um episódio vivenciado no Rio de Janeiro, no prédio no qual aluga um escritório. Certa vez, ao sair do local, esbarrou em uma senhora com formação de arquivista, que reconheceu o rosto da autora de algum programa de entrevistas. Perguntou o que ela fazia. Conceição respondeu que era escritora e a mulher imediatamente perguntou se a romancista era autora de livros de receitas. “E não estamos falando de uma pessoa sem leitura! Essa até deu um salto adiante: mulher negra até pode escrever, mas tem que ser um livro de receita. Então, escrever e publicar são atos de rebeldia que nos colocam em outro lugar, contrariando o imaginário que a sociedade brasileira tem sobre nós”, diz a escritora mineira.
Houve mudanças desde os anos 1990, mas Conceição acredita que ainda são poucas.
No ano passado, quando a Flip celebrou Lima Barreto (o segundo autor negro na lista de homenageados da festa, depois de Machado de Assis), ela também estava entre os convidados. “As autoras negras não eram lembradas, ou eram lembradas muito pouco. Hoje, a gente tem participação maior nos eventos literários”, diz. “Nossa presença tem se dado com mais constância porque a gente tem sido convidada, mas também temos ficado mais atentas. Na medida de nossas possibilidades, procuramos participar.
Aos 71 anos, ela acredita que escrever e contar histórias é a melhor maneira de enfrentar o preconceito. Agora, trabalha em dois romances e um livro de contos e se sente perseguida por duas ideias que ainda vai executar. Uma delas é escrever um romance que mergulhe em histórias da escravidão. Não um romance histórico, mas uma ficção com pitadas de história, coisa que sempre esteve presente em sua obra. Seus dois primeiros romances, Ponciá Vicêncio e Becos da memória, foram inspirados em histórias contadas pelos velhos da família. Ali, narrativas herdadas do período da escravidão eram comuns e faziam parte de experiências muito recentes. Outra ideia que a persegue é a vontade de escrever ensaios sobre livros de autoras negras. “Isso é um compromisso que quero cumprir. Hoje, tenho um lugar no qual o fato de eu ler um livro e fazer um ensaio, uma crítica, ajuda a visibilizar esse livro. E quero fazer isso.
O mercado literário também sofre com o racismo? Há um reflexo do que se vive na sociedade?
Sim, há reflexo. Sem sombra de dúvida existe esse imaginário em relação às mulheres negras, que é um imaginário que normalmente não nos coloca como sujeitos produtores de saber, sujeitos produtores de determinada arte. A literatura, até hoje, está na mão de homens e homens brancos. Quebrar com esse imaginário que coloca as mulheres negras no lugar de subalternidade e não acreditar nessas mulheres como potentes também na escrita causa um desinteresse no mundo literário.
Como enfrentar isso?
Acho que escrevendo, contando essas histórias. Eu já tive oportunidade de cruzar com vários escritores brasileiros em eventos literários e poucos desses escritores me cumprimentam. E são meus pares. O Prêmio Jabuti parece que me legitimou entre os autores. Alguns são gentis, independente de qualquer coisa, mas há outros que só passaram a me olhar depois do Prêmio Jabuti. Por uma questão de racismo mesmo.
Chegar à escrita foi difícil? Foram muitos olhares te dizendo que aquilo não era para você?
Não, até que não, porque o primeiro lugar de recepção da minha obra foi junto do movimento negro. Foi essa militância do movimento social, de homens e mulheres, que primeiro recepcionou minha obra. Se teve um grupo social que legitimou minha literatura primeiramente, foi o grupo dos meus iguais. Depois, muito por causa dessa legitimação, homens e mulheres começaram a levar meus textos para a sala de aula, para pesquisas acadêmicas. Quando alguns textos meus começam a ser traduzidos, isso chamou a atenção dentro do Brasil. Mesmo assim, em 1995, Miriam Alves, Geni Guimarães e eu, que somos escritores negros, fomos convidados para um evento em Viena junto com Marina Colasanti, João Ubaldo Ribeiro e Nélida Piñon, que não foi. Esses escritores negros estiveram nesse mesmo evento, participaram das mesmas mesas, estiveram nos mesmos hotéis. Quando voltamos, não tivemos uma nota da mídia falando desses escritores negros, mas se falou sobre os outros dois escritores.
Na introdução de Ponciá Vicêncio, você fala que seus personagens são como parentes de primeiro grau. Como isso funciona?
Na verdade, faço uma brincadeira. Um texto literário é como se fosse um filho e alguns personagens, conheço mais de perto. Minha ficção tem muito a vida real como pano de fundo, mas isso não significa que tudo que eu escreva seja algo que tenha vivido. Não é. Pode ser uma observação, uma história que ouvi contar, um fato que assisti. E Ponciá Vicêncio, ao trazer a memória da escravidão, é algo que tem a ver com as histórias que cresci ouvindo da escravidão. Como tem também em Becos da memória. São histórias herdadas da oralidade. Muito da memória da escravidão foi contada na minha infância, eu escutava essas histórias dentro de casa.
E como cria os personagens?
Tenho muito cuidado na construção dos meus personagens, não quero criar personagens negros estereotipados como se vê na literatura brasileira de um modo geral. Quero dar a essas personagens um humanismo que a outra literatura, de um modo geral, retira. Ponciá Vicêncio, além de ter o drama dela, que é o drama coletivo dessa procura pela ancestralidade negra, é uma personagem muito só. E a solidão é característica do ser humano. E colocar essa problemática da solidão numa personagem negra é alçá-la ao lugar da humanidade que sempre tivemos e que nos é retirada. Cuido do personagem, como cuido da linguagem. .