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Tiago Ferro ressignifica a morte de sua filha no romance 'O pai da menina morta'

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Em 2016, a filha do editor Tiago Ferro foi manchete de jornal ao ser vítima da gripe H1N1. O silêncio desse pai ante a morte prematura da menina o sucumbiu ao desafio de expurgar o próprio grito interior à ventura da escrita, fazendo de seus registros fragmentários um híbrido textual de diário, poesia, prosa de ficção e também ensaio. A reunião de tudo isso levou o autor a compor um projeto para além de mero escampo de envergadura autobiográfica. O romance O pai da menina morta, sua estreia na literatura brasileira, é uma autoficção distribuída em camadas. Uma espécie de pergunta diante da ausência concomitante a uma resposta promovida de reticências. Um jogo de espelhos em que realidade e ficção se confrontam lado a lado. Em entrevista exclusiva ao Pensar, o escritor Tiago Ferro conta detalhes sobre a feitura do livro, a experiência da perda e o interesse em registrar o próprio luto através da literatura.

O pai da menina morta é um romance autobiográfico em que você utiliza um evento traumático para retrabalhar questões referentes à perda e ao luto no campo ficcional. Como se deu tudo isso? 
Desde o início, havia o projeto de escrever um romance sobre o tema.
No entanto, não diria que se tratava de externar a questão em si, mas de investigar outras questões que estavam no ar, ainda sem forma e também sem nome. A forma romance, portanto, a ficção, permitiu que eu realizasse esse mergulho investigativo subjetivo sem nenhum compromisso em ser fiel aos acontecimentos, sem necessariamente ter como projeto contar a minha vida. A multiplicidade de vozes narrativas, os diferentes registros, o tempo embaralhado, tudo está a serviço de dar forma a sentimentos muito duros, mas também bastante potentes. Talvez se optasse por uma espécie de crônica do luto, o livro teria menos camadas, menos contradições.

Você utiliza diferentes técnicas discursivas durante o enredo fragmentário. Pode falar um pouco sobre esse tipo de estrutura?
Uma das minhas intenções, e nem todas se cumprem durante a escrita de um livro, era tratar muito mais de uma espécie de “dia depois de amanhã”. Não do luto em si, da dor e da tragédia, que também estão no livro em alguma medida, mas principalmente da dificuldade de se readaptar ao mundo após um evento que te arranca dele de forma violenta. É sobre um certo deslocamento, um processo de estranhamento radical daquilo tudo que fazia sentido até “ontem”.
Nada se sustenta no caminho desse narrador. Ele quer se engajar, mas tudo foi modificado: presente, futuro e também o passado; estranhamente modificado, já que, para o restante das pessoas, nada mudou. O desajuste do mundo está no olhar dele, nessa nova forma de estar na sociedade (já que ninguém pode ficar de fora). A ausência da filha está presente em cada letra do livro, mas não necessariamente mencionada e tratada com coerência narrativa realista. A ausência, paradoxalmente, é o único ponto estável e concreto do romance. Todo o resto é caótico.

Escrever O pai da menina morta foi uma busca sobre si mesmo, uma catarse ou uma resposta para alguma coisa que passou a lhe faltar durante um dado momento de sua vida?
Acredito que todo impulso formal, e isso vale para a literatura e também para outras formas de arte, parte de uma busca por preencher algo que falta. Dar forma a esse incômodo (vazio) que está lá, mas ainda incompreensível. Elaborar algo que o senso comum e o dia a dia não conseguem dar conta.
O que me interessa é justamente esse momento da escrita, a fase em que sondar essas áreas obscuras não precisa de nenhuma outra justificativa. A literatura como um fim no próprio processo de criação da forma. Terminado o livro, surgem novos vazios, que pedem por outras formas. Acho provável que no fim seja uma mistura de tudo isso, sem que seja possível mapear exatamente um único impulso principal.

Você trabalha com uma literatura de camadas, que ao mesmo tempo é uma espécie de jogo de espelhos e uma prosa que se dialoga com o ensaio. Quando estava escrevendo, você sentiu que o romance poderia estar indo para uma outra direção?
De fato, a escrita chegou a escorregar demais para uma perda completa do fio narrativo, como se um mergulho ensaístico, delirante, fosse a única forma possível de lidar com o tema em questão da forma como ele foi se apresentando para mim. Nessas horas, procurei resgatar a narrativa para que uma história mínima não se perdesse e os delírios da linguagem respondessem a momentos específicos do livro e da consciência excitada desse narrador, mas que não dominassem todo o romance. No final, fiquei satisfeito com a mistura de estilos e registros e, se não estou enganado, há um equilíbrio.

Como foi dar conta desse estratagema de reproduzir no âmbito da linguagem os processos psíquicos de um pai que perde uma filha?
Comecei elaborando o texto na forma de um diário bastante tradicional, com a organização temporal que esse tipo de registro exige. Mas conforme o livro “pedia” a entrada de memórias, de outras vozes, de personagens que dessem conta da experiência subjetiva, fui “sujando” esse diário, embaralhando o tempo e, ao mesmo tempo, libertando a própria narrativa. Quando finalmente fiquei satisfeito com a forma encontrada, que era uma mistura entre liberdade de experimentação e compromisso narrativo, reli o que estava pronto e apaguei muitos trechos que estavam ainda presos aos fatos como se deram. Feito isso, eu me libertei da realidade vivida e encontrei a liberdade total e completa de um projeto ficcional.
Parece-me que foi a partir desse ponto que escrever passou a representar um momento de quase euforia.

Você trabalha como editor do e-galáxia. Como surgiu e por que fundar uma editora voltada apenas na edição digital de livros?
Sou um entusiasta das oportunidades que os meios digitais oferecem para autores independentes. Entendo que há um posicionamento político, no sentido forte da palavra, nesse projeto digital de publicação independente da e-galáxia. Isso sem nunca deixar de ser crítico ao que há de problemático nas chamadas utopias digitais. Se por um lado você dá voz a boa parte da produção que permanecia silenciada ao oferecer ótimos recursos de distribuição e divulgação, portanto, democratiza o campo cultural, há sempre um grande grupo buscando estabelecer o monopólio dessa produção por meio de uma nova tecnologia.

Qual é a sua visão sobre a produção literária no Brasil dos últimos anos?
Parece-me que a riqueza da produção contemporânea, seja na literatura ou em outras formas de arte, no Brasil ou em países com tradições completamente diferentes, está na ausência de qualquer compromisso rígido com certos discursos ideológicos de uma época. Ninguém mais se sente obrigado a elaborar “questões nacionais”, por exemplo. O romance hoje ultrapassou duas fases distintas: o desejo de totalidade e as experimentações vanguardistas, e sobreviveu retomando o gosto pela narrativa, mas sem ignorar as questões estabelecidas pelos projetos que mais ousaram com a linguagem durante o século 20. O romance passou a representar muito bem a falta de sentido da modernidade e, ao mesmo tempo, a fragmentação dos discursos e mediações desses anos mais recentes. O romance também coloca a questão de como narrar, ou se ainda é possível narrar em tempos de redes sociais e predominância do tempo rápido das imagens e dos vídeos. O que toda essa força e variedade neste momento da produção torna difícil é encontrar e relacionar livros que tenham pontos em comum.
Ficou praticamente impossível falar em escolas, grupos etc., o que de alguma forma torna a tarefa de mapear essa literatura contemporânea muito difícil. Portanto, as mediações se fragmentaram e a produção também. Sem perda de qualidade, mas gerando uma nova problemática para se encontrar sentidos claros que se coloquem de maneira forte para os problemas gerais da sociedade, como a literatura já foi capaz de fazer em outros tempos e lugares.
 
 
O PAI DA MENINA MORTA
De Thiago Ferro 
Todavia Livros
176 páginas
R$ 44,90 

*Márwio Câmara é escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Editora Oito e Meio).
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