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Livro de contos de Gustavo Pacheco provoca reflexão e incômodo

É com olhar de distanciamento, de muita inquietação e de estranhamento que Alguns humanos pede para ser lido. Primeiro livro de contos de Gustavo Pacheco, essa reunião de 11 histórias causa mais que incômodo. Perturba e sugere reflexões que talvez surpreendam o leitor de um modo produtivo.


Dohong é o protagonista do primeiro conto. Não é o narrador, mas o dono do ponto de vista dessa história baseada em fatos e relatos. O autor recupera o episódio do pigmeu enjaulado em um museu do Bronx (Nova York) no início do século 20 e narra o ocorrido a partir da perspectiva de um orangotango. Em Zakaly, é o ponto de vista de uma criança capturada na África e embarcada em um navio negreiro que embala o leitor. Baseado em nota de rodapé sobre a história da escravidão, Pacheco trouxe para o conto um episódio raro de rebelião de escravos embarcados. O olhar infantil do personagem fisga o leitor e joga a lente de aumento na brutalidade da escravidão, que toma proporções extremamente cruéis na voz de Zakaly.


Mais adiante, um conto passado no Museu de História Natural de Nova York questiona o porquê de índios e pigmeus serem representados da mesma forma que animais pré-históricos, enquanto não há nem sequer uma representação de uma família ocidental.
E assim segue. Kuek foi um escravo comprado pelo príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied. O jovem africano integrava uma coleção de curiosidades e viajava pelo mundo como tal. Hoje, seu crânio é manipulado – novamente – como curiosidade. Ponto para a bizarrice das escolhas humanas. Julia Pastrana foi a mulher mais feia do mundo, segundo um jornal mexicano, e a volta de sua múmia ao país natal causa frisson.


As histórias de Pacheco são assim, bizarras, cheias de humor negro e com passagens que podem parecer delirantes, mas, na maioria das vezes, são baseadas na realidade, o que causa certo espanto, como se a humanidade olhasse para si mesma com desconfiança.


Muita pesquisa embasa os 11 contos publicados nesse volume com um olhar antropológico, porque essa é a formação do autor, que confunde e propõe uma revisão da “normalidade” da qual acreditamos sempre ser portadores. “Sinto-me muito à vontade na antropologia, o espírito antropológico de olhar com curiosidade e com distanciamento, inclusive para a nossa própria cultura, é algo de que gosto muito.

E tem várias coisas ali que são uma espécie de gestão de questões, de temas, de histórias que vivi ou que entrei em contato”, avisa.


Radicado em Brasília, Gustavo Pacheco, de 46 anos, nasceu no Rio de Janeiro e trabalhou no Museu de História Natural antes de se tornar diplomata. Como funcionário do Ministério das Relações Exteriores, morou em várias cidades, mas foi em Buenos Aires (Argentina) que assumiu a escrita.


Alguns humanos é seu primeiro livro. Fez com que o autor fosse convidado para uma das mesas da edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ele estará acompanhado de Sérgio Sant’Anna, referência do conto, gênero no qual Pacheco se inspira.

 

 

ALGUNS HUMANOS

De Gustavo Pacheco
Tinta da China Brasil
144 páginas
 R$ 65

 

Três perguntas para...

 

gustavo pacheco
escritor

 

1 Você diz que algumas coisas vividas inspiraram os contos. Como é isso?
Mais do que episódios específicos, tem a ver com uma certa sensibilidade, com um certo olhar antropológico. Algumas dessas histórias, topei com elas em livros. As histórias nunca são integralmente calcadas na realidade, têm sempre alguma adaptação. Gosto muito de conjugar várias dimensões, de prender a atenção do leitor para que ele não sinta que perdeu seu tempo.

Gosto também de fazê-lo pensar, que provoque algum tipo de reflexão ou de curiosidade para conhecer mais sobre determinado tema. Tudo isso, pra mim, é relevante, faz parte da experiência da leitura. É isso que procuro como leitor e como escritor.

2 Você falou em empatia com o leitor. Empatia é algo que falta hoje?
Sim, sem a menor dúvida. A questão da empatia, às vezes, é colocada com um sentido moral que nem sempre traduz uma real necessidade, ou o que está realmente envolvido quando a gente fala em empatia. Empatia não significa assumir, de maneira acrítica, outro ponto de vista, não significa estar em busca de uma noção idealizada do que seria entendimento. Empatia tem a ver com abrir a percepção, com ver mais coisas, inclusive coisas contraditórias. E me preocupei muito em apresentar contradições. Tem essa noção clássica de que trazer mais perguntas é mais forte do que trazer respostas. Não quero trazer respostas.
Pelo contrário, quero bagunçar o coreto. Essa ideia de que empatia é uma resposta não é bem por aí. Empatia serve para bagunçar o coreto e, ao bagunçar o coreto, é que é possível algum progresso.

3 Os contos de seu livro também são uma crítica à sociedade contemporânea?
Não só à sociedade contemporânea, mas às limitações de pensamento em geral. O desafio é fazer isso de maneira convincente. A maneira mais fácil de fazer isso de maneira convincente é trabalhar com base na realidade, nessas histórias que parecem inventadas, mas não são.

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