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Belo Horizonte recebe grande exposição do artista nova-iorquino Jean-Michel Basquiat


Acomodado em sua poltrona no avião, Jean-Michel Basquiat viajava para a Itália para uma de suas primeiras exposições individuais. Abriu um livro sobre esculturas romanas. Folheava-o com avidez e, embora parecesse aleatório, seu olhar se fixava detidamente em imagens específicas. Em seu caderninho, começou a listar nomes e referências sobre aquelas obras clássicas. Curiosa, a senhora do assento ao lado lhe perguntou: “O que está estudando?”. Ele tinha apenas 21 anos. Suspendeu a caneta do papel, deixando pela metade a palavra Vênus. Olhou a simpática senhora e, com a certeza de moleque, disse: “É um desenho”.

Um dos destaques da mostra no Centro Cultural Banco do Brasil, a tela Lombo foi produzida por Basquiat aos 22 anos - Foto: The Estate of Jean-Michel Basquiat/Artestar/Divulgação
O caso foi contado por Basquiat, de maneira muito sucinta, numa entrevista publicada na revista Interview, em 1983.

Provavelmente, a senhora nunca se deu conta de que aquele jovem negro de cabelos rebeldes era um grande artista. Ele próprio, certamente, não fazia a menor ideia de que se tornaria um dos maiores nomes da arte norte-americana do século 20.

A atribuição de tamanho valor à obra de Basquiat – tanto em termos artísticos quanto monetários – é controversa. No entanto, é fato que o interesse por seu trabalho cresce tão vertiginosamente quanto o preço de suas obras no mercado da arte. No ano passado, a tela Sem título, apelidada de Caveira (Skull), foi vendida por US$ 110,5 milhões, o maior valor pago por uma obra de arte norte-americana. Este ano, além do Brasil, grandes retrospectivas do trabalho de Basquiat estão sendo apresentadas, com alarde, em Londres, Frankfurt e Paris.

E Belo Horizonte, a partir de hoje, recebe uma excelente amostra da produção do artista. A exposição Jean-Michel Basquiat – Obras da coleção Mugrabi, que tem a curadoria de Pieter Tjabbes, está aberta ao público no Centro Cultural Banco do Brasil por 73 dias. Foram necessárias longas negociações e cerca de R$ 15 milhões em seguros e logística para a coleção do empresário Yosef Mugrabi circular por quase um ano no país, entre São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Tudo isso reitera a importância da mostra e a rara oportunidade de ver de perto o trabalho de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), morto precocemente aos 27 anos.

GRAFIA Diante dos mais de 80 trabalhos exibidos ao público brasileiro, a resposta de Basquiat à companheira de voo oferece uma das chaves para compreender a obra do artista. “Para ele, imagem e palavra têm o mesmo valor. A diferença entre um desenho, um quadro e um objeto é zero, é tudo igual, não existe hierarquia”, afirma o curador holandês Pieter Tjabbes.

Tjabbes ressalta o caráter intuitivo de Basquiat e a necessidade de dar vazão ao que percebia do mundo. Indistintamente, utilizou pintura, desenho, objeto, texto e música como forma de se expressar. “Às vezes, uma imagem traz uma palavra, um significado e, às vezes, a palavra traz uma imagem. Ele pode escolher uma palavra por causa do som ou pela grafia. Acho que não tem uma explicação formal para isso”, diz o curador sobre a frequente combinação de imagens figurativas e textos nos trabalhos de Basquiat. “Palavra e imagem são cambiáveis, têm o mesmo peso e valor, é uma fronteira muito fluida.”

Além de explorar a integração entre texto e imagem, outro recurso inovador no vocabulário de Basquiat é o uso de camadas em que superpõe materiais e linguagens.
“Ele usa xerox dos desenhos, cola nos quadros, pinta por cima, usa tinta a óleo nos desenhos, ele não se importa com qual é o suporte para criar, cola elementos, objetos que achou, mistura tudo isso. É uma linguagem da simultaneidade e que reflete a nossa forma de pensar, que é totalmente não linear”, explica Tjabbes.

Para o curador, essa característica explica em parte por que o nova-iorquino está sendo tão venerado por jovens que nasceram após a morte do artista. “Os jovens pensam de forma fragmentada e rápida, formam sua visão de mundo a partir desses milhões de fragmentos. Basquiat teve um pouco essa forma de pensar, em que recebia e reagia a partir do que o cercava”, pontua. “A obra dele está muito mais atual hoje do que há 30 anos.”

Na obra de Basquiat, simultaneidade, fragmentação e superposição podem ser resumidas na ideia de sampler, já que a inquietude frenética desse artista o fazia tomar a liberdade de se apropriar e incorporar todo tipo de informação que lhe chegava. “Basquiat não tem medo nem pudor de tomar emprestadas suas referências, tanto de DJs quanto de cientistas, da história da arte, de filmes ou animações que vê na TV. Ele cola tudo isso, esse monte de pecinhas, e faz uma coisa muito maior, costura uma nova linguagem, uma nova ordem”, afirma Tjabbes, relacionando esse recurso à geração e ao ambiente de Nova York no fim dos anos 1970.

Para o curador, Basquiat “é um filho do seu tempo”. Nascido e crescido em Nova York, recebeu e incorporou as influências do caldeirão cultural da metrópole, com boa dose de violência reativa. “É o momento em que o movimento hip-hop está nascendo e reflete o protesto da população jovem, principalmente dos negros, dentro de um período de crise, em que havia menos esperança e perspectiva”, diz. No entanto, o jovem Basquiat foi criado num ambiente de classe média, em que a mãe porto-riquenha o levava frequentemente a museus de arte, e o pai haitiano tinha uma coleção de milhares de discos de jazz.
Estudou na City-As-School, escola alternativa que buscava reunir jovens “fora dos padrões” oferecendo um ensino diretamente vinculado com a realidade.

A rua, porém, era o que lhe fascinava. Com o colega Al Diaz, criou um projeto de ação por meio de inscrições poéticas nas ruas de Manhattan chamado SAMO, abreviação de Same Old Shit – ou Mesma Merda de Sempre. Eram frases enigmáticas e relacionadas ao universo da arte escritas em paredes, portas e metrôs que chamaram a atenção dos habitantes da cidade no fim dos anos 1970.

Cada vez mais interessado pelo universo da arte, participou como músico da banda Gray, como ator do filme Downtown‘81, de Edo Bertoglio, e despertou interesse de artistas e galeristas com seus desenhos e pinturas. A partir da primeira exposição, em 1981, sua fama como artista explode. A linguagem frenética e raivosa, os traços que refletiam a linguagem do grafite e das ruas foram inovadores. “A linguagem do grafite tem a vantagem de que acompanha a velocidade do pensamento dele e, assim, ele chega mais perto do desenho da criança, da arte primitiva. Ele acredita que, dessa forma, está se expressando de uma maneira mais direta com o público”, aponta Tjabbes, acrescentando que a personalidade de Basquiat é impulsiva e acelerada, incentivada também pelo uso de drogas, comum à sua geração e ao ambiente que o cercava.

ANATOMIA  Ao mesmo tempo em que mantinha no desenho sua base criativa, explorando grafismos e se apropriando de símbolos de toda ordem, Basquiat consumia arte, absorvendo referências. “Ele é uma mistura de culto e popular. Tem um lado pop, que é o desenho animado, o quadrinho, a televisão; de outro lado, ele é superculto, no sentido de que visita exposições, bebe da fonte dos surrealistas, dos cubistas, usa colagens, se inspira muito em Da Vinci por causa dos textos aliados à imagem, toma textos científicos de anatomia. Ele sabia muito bem da história da arte.
Não lia os textos, mas via as imagens”, conta o curador, que fez longa pesquisa sobre a biografia do artista.

A força expressiva do trabalho de Basquiat chamou a atenção de Andy Warhol, com quem estabeleceu uma relação próxima, de admiração mútua e resultou em trabalhos a quatro mãos – alguns desses integram a exposição. Circulando na cena artística e convivendo com celebridades, o jovem de 24 anos passou a ser cultuado e seu trabalho era disputado por colecionadores a altos preços. O sucesso, entretanto, evidenciou o contraste entre suas origens de jovem negro que vivia nas ruas e o artista bajulado pela elite branca e rica de Nova York. Consciente de ser o único negro de sucesso no meio artístico norte-americano, Basquiat traduz essa dualidade e a externa, de maneira irônica e, às vezes, raivosa em seu trabalho.

A força da arte de Basquiat reside precisamente na capacidade de captar o que o cerca e devolvê-la sob uma linguagem própria. Ao estabelecer associações entre elementos díspares e fragmentários, escancarando o caos da sociedade contemporânea, Basquiat se expressa com inteligência e a sensibilidade próprias e bastante singulares. Isso o faz não só um grande artista de seu tempo, mas um artista premonitório.

JEAN-MICHEL BASQUIAT – OBRAS DA COLEÇÃO MUGRABI
De hoje a 24 de setembro, de quarta a segunda, das 9h às 21h. No CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431 9400). Entrada franca.

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