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Poema épico de 3 mil anos ganha nova edição com tradução para o português

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O “Y” em Jacyntho é uma afirmação inesperada da contemporaneidade clássica do autor – como se resgatasse, já em princípio, algo de novo na tradição. A letra – consoante para uns, vocal para outros ou ainda consoante vocal – veio a se popularizar no Brasil só na década de 1990, quando nomes como “Yasmin”, “Yago” e “Yuri” ganharam força. Jacinto, por outro lado, foi um nome famoso nas décadas de 1950 e 1960. A figura do professor Jacyntho Lins Brandão não tem nada de anacrônica, embora se dedique há mais de 40 anos ao ensino de grego e literatura clássica na Universidade Federal de Minas Gerais.

Graduado no curso de letras pela UFMG, em 1977, imediatamente após a formatura tornou-se professor na universidade. Jacyntho coleciona méritos diversos que vão desde vice-reitor da UFMG, fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e, mais recentemente, membro da Academia Mineira de Letras. Além de ser considerado um dos maiores helenistas do país, entre seus feitos está a tradução do mais antigo texto literário de que se tem notícia, o poema épico Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh.

O texto, atribuído a Sin-léqi-unnínni (séc. 13 a.C.), narra uma das versões do mito de Gilgámesh. A tradução de Jacyntho para o português, direto do acádio, é a mais consistente e completa já realizada no Brasil.
O livro foi lançado em outubro de 2017 com a tiragem de 500 exemplares pela editora Autêntica, que não esperava se ver obrigada a fazer mais duas edições para suprir a demanda em tão pouco tempo.

O poema, encontrado em tabuinhas de argila entre 1872 e 2014, começa com o verso mais marcante de toda a narrativa – “Ele que o abismo viu” e traz, já na Antiguidade mais longínqua, temas de uma humanidade constante: a criação, a morte, o divino e a relação do ser com o mundo. Mas, para além da filosofia impressa nos versos, há o início de uma revolução tecnológica: a transição da escrita figurativa, cuneiforme, para a alfabética. O acádio, definido pelo professor como “o inglês da época”, por ter funcionado como língua de comunicação entre os diversos povos da Babilônia, marca essa transformação. Em entrevista ao Pensar, Jacyntho Lins Brandão fala sobre o processo de tradução do texto, a revolução da escrita alfabética, a poesia como forma mais antiga de registro literário e o sucesso da edição do clássico.

ENTREVISTA/Jacyntho Lins Brandão

Como foi seu contato com o acádio?
Veio com a vontade de fazer essa tradução. Já tinha estudado, no final dos anos 1970, o hebraico, que, de certa forma, é parecido por ser uma língua semítica, apesar de o acádio ser mais complexo em questões de morfologia e de estrutura da própria língua. Porém, o modelo é muito parecido. Achava que alguém deveria traduzir esse poema.

Como conheceu o poema?
No começo do século 20, começou-se a trabalhar muito essa relação da Grécia com o Oriente Médio, do quanto a Grécia recebeu de coisas de lá.
Esse tipo de texto passou a ser importante para quem é professor de grego. Não dava mais para entender a língua e a cultura clássica sem ter essa perspectiva. Acaba, então, aquela ideia meio preconceituosa do século 19 de que a Grécia fez tudo. A Europa dizendo: “Olha, olha, a gente fez tudo, a barbárie são os outros”. É interessante que a tal “barbárie”, perto da Europa, são os árabes. Falta muita tradução desses textos, não temos praticamente nada em português.

O que mais o impressionou no texto durante o processo de tradução?
A primeira tabuinha é muito legal. A forma da descrição, o jeito como é escrito. Tem um trecho que o mortal se coloca frente à deusa.
É até engraçado. Alguns comentadores dizem que nunca viram um mortal, em textos literários, se dirigir a uma deusa daquele jeito. Outros pontos muitos bonitos são os trechos de lamentação do personagem, são imagens muito próprias do Oriente: “Versos de minha fé, cinturão do meu desejo”.

As imagens são elaboradas literariamente de maneira muito diferente. Como o senhor vê essa construção?
Esse tipo de imagem aparece em outras literaturas semíticas do Oriente. O que o poema tem de legal é o que ele tem de diferente. É, inclusive, uma opção que fiz na tradução. Não domestiquei o texto. Por exemplo, há traduções que completam os trechos que faltam nos registros. Respeitei o poema. Quis deixar o poema chegar com o que ele tem de diferente e de difícil, inclusive.
É claro que uma coisa escrita há mais de 3 mil anos tem que ser difícil, não pode ser uma coisa que pensamos “é tudo igual à gente”. Outra coisa interessante nisso é que ele faz parte de uma das versões desse mito. Tem vários outros poemas em sumérios, vários. Tudo isso está no espaço da escrita cuneiforme. Tem uma diferença muito grande em relação à Grécia. Com a tecnologia de escrever em argila, essas várias versões foram preservadas. Conseguimos seguir as formas do texto a partir do registro escrito, o que não ocorre na Grécia, uma vez que escreviam em materiais mais perecíveis. É essa escrita que dá uma identidade e uma coesão para esse espaço que tem vários povos. É um problema de tecnologia, no fim das contas.

A escrita foi se transformando, nesse período, no que conhecemos hoje como o alfabeto. Como esse texto se situa nesse período e o que ele representa?
A primeira língua que foi decifrada foi o persa.
Eles pegaram todos aqueles sinais e ficaram só com 24 ou 25. Eles fizeram igual à gente, representaram um símbolo para “a”, um para “b” etc. A segunda língua que foi decifrada foi o elamita, que usava cerca de 100 sinais. O acádio usa em torno de 600 sinais. Ele é um sistema complexo. No sumério faziam-se logogramas, ou seja, um símbolo era a palavra inteira, ao contrário da escrita silábica. O acádio usa muito isso ainda. É engraçado que, às vezes, temos um verso muito comprido na tradução e se pode pensar: como coube isso em uma linha no original?. É porque eles ainda usavam muito o logograma, que veio do sumério. O acádio mistura a escrita silábica com essa iconográfica. O acádio era a língua falada em toda aquela região do Oriente. O próprio faraó do Egito se correspondia com o rei da Babilônia em acádio. Era o inglês daquela época. Tem-se que pensar que isso foi um sistema de escrita que durou muito tempo, mais de 3 mil anos. Falo com meus alunos, sempre, a nossa civilização ocidental e cristã tem 2 mil anos e a gente acha o maior sucesso estar no século 21, faltam mais 1.200 para empatar.

Como o senhor vê a mudança tecnológica do alfabeto?
O que acho impressionante é como sumiu tudo. Chegou uma tecnologia nova, o alfabeto, e destruiu toda essa tradição. Ficou tudo esquecido e, literalmente, enterrado. Isso é bom para que percebamos a importância que tem o sistema de escrita. Tem uma série de fatores para isso, questões políticas e tudo mais. Tudo isso fez com que houvesse uma quebra na transmissão da língua. Na minha visão, o sistema de escrita teve um peso muito grande. O alfabeto chegou como uma coisa mais simples e é impressionante como acabou com tudo. Toda tecnologia supõe duas coisas: que ela seja mais prática do que a anterior e mais barata. Tecnologia é isso. Fala-se muito de e-books hoje, por exemplo. Desde que inventaram um sistema que você consegue levar 5 mil livros no lugar de um, é claro que o livro de papel vai acabar. Vamos passar um tempo com as duas coisas, todo mundo gosta do que está acostumado, mas depois vai prevalecer a mais fácil. Foi o que ocorreu com o alfabeto. É uma questão prática.
 

ELE QUE O ABISMO VIU: EPOPEIA DE GILGÁMESH
>>  De Sin-léqi-unnínni
>>  Tradução e notas de Jacyntho Lins Brandão
>>   336 páginas
>>  R$ 59,80 (livro) e R$ 19,90 (e-book)
 
* Estagiário sob a supervisão do subeditor Pablo Pires Fernandes
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