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Homenageada na Flip 2018, Hilda Hilst ganha box que reúne sua prosa completa

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Muitos leitores nem desconfiam, mas Hilda Hilst é uma das autoras preferidas de Daniel Galera. O autor de Barba ensopada de sangue lembra que começou a ler a obra de Hilda quando era aluno da Oficina de Criação Literária da PUC/RS, um reduto de formação de jovens escritores brasileiros. Foi fisgado por Fluxo — Floema, primeiro livro de ficção da escritora, publicado em 1970. Antes, havia se deparado com os poemas de Presságio, mas não se empolgou muito. “Acho que não entendi bem de primeira, talvez não tenha batido”, conta Galera. “Então, comprei o Fluxo — Floema num sebo e, aí sim, fui ler. Naquele momento, o texto da Hilda me atingiu em cheio, fiquei muito animado, entusiasmado com o jeito que ela escrevia, com o tipo de ideia que ela expressava, com a ousadia da forma do texto.”

Esse fascínio acompanhou Galera a vida inteira e o levou em direção a outras leituras, coisas indicadas pela própria Hilda em citações e epígrafes. Foi uma escolha, portanto, natural da poeta e editora Alice Sant’Anna para o posfácio de Da prosa, caixa com dois volumes da prosa completa de Hilda Hilst que a Companhia das Letras lança para esquentar as vendas na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na qual a escritora será homenageada entre 25 e 29 de julho.

Assinam ainda textos para o posfácio Carola Saavedra e o pesquisador Alcir Pécora.

Galera lembra que quando descobriu a obra da autora não era assim tão fácil encontrar os livros. Quem gostasse de frequentar sebos não teria problema, mas era preciso saber o que se estava buscando. “Não é que fosse uma autora inacessível, mas é que tinha que fazer um pouco de esforço para achar”, lembra. Editada inicialmente nos anos 1960 graças ao esforço pessoal de Massao Ohno, ela só começou a ganhar mesmo as prateleiras das livrarias com algum destaque quando passou para a editora Globo, por volta de 2000. Considerada de difícil compreensão e um tanto obscura, a autora teve os livros recusados por alguns editores, especialmente quando embarcou na fase erótica que rendeu livros como O caderno rosa de Lory Lamb e A obscena senhora D.

Galera a conheceu antes de as reedições ajudarem a espalhar a prosa e a poesia de Hilda. “É uma autora que conviveu comigo desde 1999, quando comecei a ler, e se tornou uma das minhas autoras favoritas, principalmente na prosa”, conta o gaúcho. “Algumas pessoas talvez se surpreendem um pouco, em função da imagem que fazem de mim ou de terem lido meus próprios livros, que a Hilda seja uma das minhas autoras favoritas.
Mas é verdade. E acho que, quando a gente é escritor, não necessariamente nossos autores favoritos influenciam de forma significativa nossa maneira de escrever. Tenho uma sintonia com ela em algumas das questões que gosta de investigar”, afirma Galera, que gosta especialmente da maneira como a autora fala sobre a morte e como trata a espiritualidade.

PERSONAGENS FEMININAS Para Carola Saavedra, autora do premiado Flores azuis e do recém-lançado Com armas sonolentas, a ligação com Hilda se dá particularmente pelas personagens femininas. É sobre elas o projeto de pós-doutorado que Carola prepara com a intenção de estudar a construção das personagens femininas da escritora e compará-las com as da austríaca Elfriede Jelinek.

“É um dos aspectos mais interessantes da obra dela, pelo menos para mim. E também é muito atual”, diz Carola. “Nas entrevistas, e a gente tem sempre que pensar que a Hilda dando entrevista é uma performance, muitas vezes o que ela diz é debochado, muito irônico. Perguntam para ela por que as personagens femininas de seus livros são burras e chatas e ela fala ‘porque não me interesso pelas mulheres, porque elas são chatas, são burras mesmo, não são capazes de pensar em termos mais profundos’. Claro que isso é um deboche.
Por outro lado, a verdade é que, com exceção de A obscena senhora D, ela coloca as mulheres com esse estereótipo mesmo.”

Carola lembra que é preciso compreender o tempo da autora. Hilda Hilst tinha uma relação especial com suas personagens femininas e dizia que não gostava muito delas. A única com quem realmente conseguia conviver era a Hillé, de A obscena Senhora D.

Hilda nasceu em 1930 e morreu em 2004. Começou a escrever e publicar em uma época na qual as mulheres nem sequer podiam votar. Preferiu a literatura ao casamento, embora tenha se casado, e uma vida reclusa à atuação social que dela era esperada. Filha de um jornalista esquizofrênico, trocou a vida social agitada em São Paulo pela Casa do Sol, uma chácara no interior do estado, na qual foi morar em 1966, com a intenção de se isolar para escrever sua literatura.

É preciso saber disso para entender sua fala. Em 15 edições, Hilda é a terceira mulher homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). É pouco, embora seja mais do que no quesito cor: Lima Barreto foi o primeiro negro homenageado, na festa do ano passado. “Hilda é filha de seu tempo, um tempo em que uma mulher escrever e ser levada a sério era difícil. Ela não queria se colocar naquele lugar de ‘estou escrevendo sobre temas femininos’.
Ela queria se colocar num lugar de ‘quero falar dos grandes temas, da busca de Deus, de filosofia, da morte, quero ser levada a sério’. E ela viveu em um tempo em que isso era tão difícil que ela se colocava como homem”, diz Carola.

CORPO Essa liberdade é um dos aspectos que provocaram o encantamento de Daniel Galera. Ele aponta que Hilda não se alinha muito com as questões de liberdade individual e identitárias presentes no discurso cultural dos dias de hoje. Ela pode ser libertária em vários sentidos, especialmente em relação ao corpo, à velhice, à liberdade da mulher de pensar, de agir. “Mas muitos de seus personagens femininos são caricatos, subservientes e vistos de uma forma que não é politicamente correta. Ela tem uma voz muito livre, diz o que quer e não tem preocupação em ferir sentimento das outras pessoas. O que é uma coisa um pouco diferente do tom de escrita libertária que se procura hoje em dia, na qual a preocupação com atingir ou ofender a sensibilidade alheia é muito forte”, diz Galera. “Acho isso muito mais empolgante e salutar do que o tipo de discurso libertário regrado que impera no ambiente cultural atual.”

Da prosa vem acompanhado de dois livrinhos de poemas, apostas comerciais para aproveitar o potencial de vendas da homenagem da Flip. Júbilo, memória, noviciado da paixão, publicado em 1974, sai agora pelo selo de poesia de bolso da Companhia, e De amor tenho vivido traz 50 poemas sobre um dos temas mais presentes na obra da autora. “A poesia dela tem alguns temas principais, que se repetem, como o amor, a morte, o tempo passando.
E ela fala muito sobre essa convicção de que as coisas são passageiras. E muito sobre o amor, sobre esse desejo ardente, a vontade de encontrar o amado. Ao mesmo tempo, ela sabe que esse encontro é efêmero”, aponta Alice Sant’Anna.

Para a editora, Hilda é uma voz importante no Brasil contemporâneo, especialmente quando desafia as convenções. Ela foi transgressora em muitos aspectos — escolheu viver para a literatura e escrever de forma ousada em uma época em que as mulheres nem sequer votavam —, inclusive na experimentação da linguagem, mas sua obra começou a ser mais difundida e reconhecida no início do século 21. Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, publicou o primeiro livro de poesia, Presságio, nos anos 1950, e embarcou na prosa duas décadas e oito livros de poema depois, em 1970, com Fluxo—Floema. A homenagem da Flip faz a autora subir mais um degrau na escada do reconhecimento ao movimentar o mercado editorial ao ser integralmente reeditada.

 

- Foto:

Da prosa

Hilda Hilst
Companhia das Letras (888 páginas)
R$ 89,90

 

- Foto:

De amor tenho vivido – 50 poemas

Hilda Hilst

Companhia das Letras (96 páginas)

R$ 49.90

 

Júbilo, memória, noviciado da paixão

Hilda Hilst
Companhia das Letras (132 páginas)
R$ 24,90

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