Pedro Henrique Neschling continua mais lembrado como ator, diretor, roteirista e dramaturgo, mas sua carreira como escritor ganha contornos cada vez mais nítidos. Depois de estrear em 2015 com Gigantes, no qual, ao acompanhar os anos de amadurecimento de cinco amigos, mostrou o caminho da transformação do homem, ele retoma seu interesse pelos relacionamentos humanos (que norteia sua literatura) em Supernormal (Companhia das Letras), que traz um tema ao mesmo tempo delicado e urgente, especialmente em tempos de intolerância.
Beto é um rapaz cuja vida segue uma linha sem grandes novidades: jovem advogado, trabalha no escritório da mãe e, quando não está almoçando com colegas do trabalho, mata o tempo ouvindo suas bandas preferidas. Até o momento em que conhece Helena - na verdade, trata-se de André, seu melhor amigo na adolescência e que agora é uma mulher trans. Depois do choque, Beto sai da zona de conforto e não apenas tenta entender a transição enfrentada pelo amigo como também passa a levantar dúvidas sobre sua própria realidade.
"No livro, trato justamente das rupturas da norma", comenta Neschling. "Em nossa sociedade patriarcal e machista, uma mulher se desconstruindo como protagonista não serviria a isso. Quem entra nessa espiral de autoquestionamento precisava ser o 'padrão do padrão', o detentor maior de privilégios, ou seja, um sujeito como o Beto. E esse processo é justamente consequência do reencontro com essa pessoa tão importante em seu passado, que é uma mulher trans e que ele jamais imaginou ser assim quando conviviam. Descobrir a transição sexual pela qual Helena passou gera um outro tipo de transição no Beto.
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Desconstruir
Se, em Gigantes, Neschling revela seu cuidado ao tratar de transições que configuram a vida de uma pessoa quando adulta, em Supernormal, ele avança em um terreno movediço, mas volta de lá com troféus preciosos. Engana-se, por exemplo, quem acreditar que o livro se concentra em torno de Helena - depois da surpresa provocada pela sua entrada na trama, Neschling equilibra o interesse do leitor entre a trajetória de Helena e a desconstrução sofrida por Beto.
Como vivemos em um momento de transição ("Estamos entre o que deixou de ser e o que ainda não é", já afirmou Zygmunt Bauman), isso se torna ainda mais desafiador. "Torço para que os conflitos do protagonista desse livro toquem e questionem as pessoas hoje, mas, daqui a algum tempo, que pareçam risíveis de tão antiquadas para novas gerações."
Supernormal
Pedro Henrique Neschling
Companhia das Letras
200 páginas
R$ 34,90
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