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Livro Crítica da vítima, de Daniele Giglioli, fala de temas delicados da sociedade

Ao lançar o livro Crítica da vítima (Editora Âyiné), Daniele Giglioli tem a exata medida de que entra em terreno minado ao propor esse debate. A convite de historiadores, o professor de literatura comparada da Universidade de Bergamo, na Itália, fez lançamento na Áustria. Ao terminar a explanação, a primeira pergunta veio de um sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, que se colocou contrário ao que ele havia dito. Daniele não contra-argumentou. “Não se pode discutir com um sobrevivente de Auschwitz. Pedi desculpa por não ter sido claro”, recorda-se. A ideia para escrever o livro veio em 2005, mas, por ser o tema escorregadio, demorou quase 10 anos para finalizá-lo. Apesar da objeção que recebeu na Áustria, Daniele se diz feliz com a recepção da obra pelas feministas na Itália.

O professor, que lança seu livro hoje, na Quixote Livraria e Café, falou ao Pensar sobre a mitologia da vítima, como os poderosos usam esse discurso para se eleger. Ao mesmo tempo, aponta que o argumento de “mimimi” é discurso adotado pela direita. Também falou da percepção do momento político brasileiro atual. “Causa desconforto ver o Lula preso; durante os anos 1990, a esquerda europeia via nele uma esperança.” E completa: “Pode ser algo imaginário que o Lula que vi talvez não seja o Lula que é aqui. É o mal da minha geração.”

O senhor propõe essa mitologia vitimária no contexto europeu. Ela pode ser empregada para pensar os sujeitos no Brasil, tendo em vista que tivemos escravidão que perdurou mais de 300 anos?
O descendente das pessoas escravizadas não tem que reivindicar os direitos de ontem. Eles têm os direitos de hoje.
Não é porque seu avô foi escravizado que você tem mais direito hoje. Você tem todos os direitos hoje. É frase do terceiro presidente norte-americano, Thomas Jefferson (1743-1826), grande intelectual da revolução norte-americana, que dizia que “a Terra pertence à geração dos que vivem hoje”.

O senhor diz que “as vítimas são os heróis de nosso tempo”, que defendem, no entanto, prosopopeia que não promove a emancipação. Ao mesmo tempo, o senhor fala de vítimas reais. Qual é a diferença?

A vítima real não deve ser criticada, tem direito à nossa compaixão, direito de ser escutada, mas não é um símbolo. Quando você é vítima, tem direito à sua dor, que é única. O problema é que algumas pessoas se autodefinem representantes das vítimas. O representante da vítima se torna alguém que tem poder.

O senhor fala de como alguns políticos fazem uso dessa representatividade para apresentar plataforma política.
Todos os poderosos da Terra se fizeram um pouco de vítimas.
Veja Hitler. Há um senso difundido de que todos somos vítimas. É um modo de fidelizar o público dizer “eu sou vítima”. Não importa que eu seja rico, milionário, que more no Queens, em Nova York, que é quem teoricamente não é vítima. Mas ele diz aos eleitores: “Sou tão vítima quanto você. Vocês, da classe média americana, são vítimas porque a esquerda burguesa os odeia. Hillary Clinton o odeia”. Ele se torna representante de um público que não é o dele. Faz-se de vítima e se iguala à classe média. Outra coisa é a construção tradicional de herói.
O herói é alguém que faz alguma coisa notável, considerável e representativa. Mas a vítima se torna herói, embora seja alguém que não fez nada, alguém da falta. Isso é aceito numa sociedade em que é difícil fazer alguma coisa.

Onde inicia essa mitologia da vitimização?
Tentei fazer algumas hipóteses. Uma é que começou nos anos 1960, na passagem de sociedade da produção para sociedade de consumo, ao menos na Europa e nos EUA. Nos anos 1960, havia ditadura militar no Brasil. A ideia mais importante era que você consumisse, pois a posição de consumidor é muito passiva. É algo que pode se relacionar a um cuidar bem ausente, proteção. Prometeram-me que me dariam coisas boas todos os dias e, quando não tem, a culpa é sua. Essa é a raiz do populismo: transferir a responsabilidade para outro. A culpa é do outro.

O senhor dialoga com o filósofo francês Jacques Rancière na proposição de política como espaço do dissenso e do conflito.
No livro O desentendimento, Rancière apresenta a ideia de desidentificação. Essa ideia permite ao sujeito sair desse lugar de identidade atribuída para uma construção subjetiva do self. No livro, o senhor diz que as pessoas podem ficar presas a identidades vazias.

São identidades que pretendem ser cheias. Mas é uma ideia vazia que pretende ser cheia. As nossas identidades são uma colcha de retalhos. A identidade da vítima não. É uma única coisa verdadeira. A figura-chave da filosofia moderna não é identidade, mas o sujeito. Torno-me sujeito quando decido que não farei mais como meu pai. Não é que tento matar meu pai, mas sou diferente dele. Ser sujeito é ser diferente de. Às vezes, diferente de si mesmo até. Sou pobre, mas não quero mais ser pobre. Sou homem, mas descubro que não sou heterossexual. Isso é o sujeito. Olha que ridículo o patriotismo brasileiro, onde há 30 etnias. Na Itália, é o mesmo, há 30 etnias, 50 línguas. O nacionalismo é uma identidade monolítica. Rancière diz que só há política quando há dissenso. A vítima é o contrário do conflito. Os poderosos da Terra não querem que haja conflito. Atenção, porque os conflitos promovem vítimas. Como os poderosos não querem conflitos, eles dizem “os conflitos produzem vítimas”. Na Europa, por exemplo, existe demonização do século 20: duas guerras mundiais, Auschwitz, Hiroshima. Mas, no século 20, tivemos o voto feminino, a redução da jornada de trabalho, o Estado de bem-estar social, os direitos civis. É o século do conflito, mas é demonizado por aqueles que agora têm o poder: “Agora está indo tudo bem. Estamos aqui”.

O termo vítima está muito presente no debate público brasileiro. Há questionamento direcionado a alguns grupos identitários, negros, LGBTQs, mulheres. Há um embate discursivo. Muitas vezes, a ideia de vitimização é atribuída às reivindicações desses grupos. Há um termo usado para se referir a essas reclamações: “mimimi”. Mas me parece que a ideia de vítima que o senhor apresenta não é exatamente essa ideia de vitimização atribuída a esses grupos.
Infelizmente, existe discurso muito de direita que diz “ei, mulher, pare de se fazer de vítima”, “ei, negro, pare de se fazer de vítima”. É óbvio que uma pessoa negra, que vive com muito menos oportunidade, tem todo o direito de ter raiva. A questão é o que é mais eficaz para o negro dizer: “eu sou vítima” ou dizer “eu quero poder”? Na história, toda as vezes em que os “sem poder” tiveram mais poder fizeram dizendo “tenho direito ao poder e não à compaixão”.

 

Editora aposta no debate 

Com uma equipe enxuta de três pessoas, a editora trabalha com um leque amplo de colaboradores e tem publicado obras de referência para o debate filosófico e político, títulos inéditos de autores conhecidos e vários outros que, apesar da importância, não são conhecidos fora da academia. “São coisas que a gente gostou de ler e gostaria de compartilhar”, diz o editor. Fonseca, que vive em Veneza, explica que, sem querer parecer pretensioso, busca contribuir para um debate teórico e político no cenário cultural brasileiro. “As pessoas têm que ler um pouco mais, não interessa se são de esquerda ou de direita, os autores que publicamos não são ideólogos, são pensadores.”

Atualmente, a Âyiné tem três coleções. Biblioteca Antagonista tem caráter filosófico, mas os textos dialogam com a estética e a política. Com 24 títulos, publica clássicos, mas também autores contemporâneos, e tem nomes de grande proeminência – Robert Musil, Simone Weil, Emil Cioran, Gertrud Stein e Marcel Proust, entre outros. Das Andere é o nome da coleção que trata do universo propriamente literário, seja com texto de crítica, entrevistas, memórias ou depoimentos. Com sete títulos, inclui Tomas Tranströmer, Paul Valéry e Joseph Brodsky. A coleção PreTexto traz ensaios e reflexões filosóficas e estéticas e, dos cinco livros editados, três são do pensador italiano Massimo Cacciari.

Para o futuro, Fonseca conta que lançará em breve a coleção Aut Aut, com nomes mais relacionados ao pensamento dito de esquerda, tendo como obra inaugural Melancolia de esquerda, de Enzo Traverso. Até o fim do ano, a Âyiné deve chegar aos 50 títulos, publicando a editora francesa Teresa Cremesi (A triunfante), o poeta americano-vietnamita Ocean Vuong, uma antologia de hai-kais de Abbas Kiarostami, o jornalista político britânico Edward Luce (O crepúsculo do liberalismo), uma obra da poeta polonesa Wislawa Szymborska reunindo textos satíricos e colagens -postais.

CRÍTICA DA VÍTIMA
• De Daniele Giglioli
• Âyiné
• 180 páginas
• R$ 39

LANÇAMENTO E BATE-PAPO COM O AUTOR
Hoje, das 19h30 às 22h, na Quixote
Livraria e Café (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi).

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