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Obra de Philip Roth rompe fronteiras entre experiência pessoal e criação literária


“Sou americano”, disse o escritor Philip Roth em entrevista ao jornal britânico The Guardian, em 2005, rejeitando a associação de sua literatura ao fato de ser um judeu-americano. “Não é uma questão que me interessa. Sei exatamente o que significa ser judeu, e na verdade não é interessante”, completou. Em outra ocasião, afirmou: “Não escrevo judaico, escrevo americano”. No entanto, a experiência de sua própria vida e a inevitável herança judaica – era neto de imigrantes judeus-europeus da onda migratória aos Estados Unidos na primeira parte do século 19 – está profundamente ligada e registrada em toda a sua vasta obra.

Com mais de 30 livros publicados, Roth morreu na noite de terça-feira (22), em Nova York, vítima de uma insuficiência cardíaca. O sepultamento será realizado na próxima semana após uma cerimônia íntima no cemitério da Universidade Bard College, indicou seu biógrafo Blake Bailey, acrescentando que “para aqueles que desejarem, em setembro haverá uma cerimônia em homenagem ao escritor no edifício principal da Biblioteca de Nova York, em Manhattan”.

O escritor nascido em 1933, em Newark, Nova Jersey, estreou na literatura em 1959, com o livro de contos e uma novela Adeus, Columbus, que venceu o National Book Award um ano depois. Roth considerou que chegou a um ponto de inflexão quando percebeu que poderia usar o próprio mundo como matéria-prima literária, fosse a sua infância ou o cenário de sua cidade natal Nova Jersey. “Não se pode inventar do nada, ou definitivamente eu não posso”, afirmou em um documentário de 2011.
“Preciso de algo de realidade, unir dois fragmentos da realidade para obter o fogo da realidade.”

 

De certa maneira, seus livros, cheios de humor, refletem bastante de sua personalidade, às vezes disposto e amável, por momentos mergulhado em crises existenciais e sexuais, que embaraçavam e constrangiam seus personagens. Com Complexo de Portnoy, romance publicado em 1969, seu nome ganhou o público. A história de um jovem judeu nova-iorquino de classe média chamado Alexander Portnoy, um personagem/narrador perturbado que quer “colocar o id de volta no yid” e descreve várias cenas de masturbação misturando os dilemas sexuais e o humor.

Seus romances Zuckerman libertado, The ghost writer e Lição de anatomia, e a novela A orgia de Praga formam uma série com o personagem Nathan Zuckerman, espécie de alter ego fictício de Roth. O escritor gostava de brincar com as distinções entre fato e ficção, escrevendo muitas vezes sobre romancistas neuróticos e até batizando alguns personagens como Philip – mas se aborrecia e se divertia frequentemente com o desejo dos leitores de projetar o verdadeiro Roth em suas criações.

Roth conseguiu manter a relevância de suas obras, tanto em termos de qualidade como de quantidade, incluindo sua elogiada trilogia política, formada por Pastoral americana, Casei com um comunista e A marca humana. Contemporâneo de Don DeLillo, Saul Bellow e Norman Mailer, conquistou as maiores premiações da literatura nos Estados Unidos, incluindo o Pulitzer em 1998, por Pastoral americana. Recebeu o National Book Critics Circle Award, por Patrimônio, obra autobiográfica em que analisa sua complexa e conturbada relação com o pai. Sobre o Prêmio Nobel, que nunca venceu, a jornalista francesa Josyane Savigneau, sua amiga, afirmava que esse fato “se tornou uma piada para ele”.

Em 2011, recebeu o Man Booker International pelo conjunto da obra e, um ano depois, o prêmio Príncipe das Astúrias.

Depois de mais de 50 anos de carreira, em 2010 publicou seu último romance Nêmesis, no qual narra a epidemia de pólio de 1944 em Newark, em Nova Jersey, onde passou a infância. Dois anos depois, anunciou que não escreveria mais, surpreendendo o mundo literário e deixando seus leitores inconformados. “É quase como ouvir que Keith Richards se aposenta do rock and roll ou que o papa abandona a religião”, escreveu o crítico James Walton na época.

Roth permaneceu fiel à sua decisão e se declarou feliz com sua vida pós-literatura, embora tenha admitido que escrever o ajudou a permanecer longe da depressão. “Havia chegado ao fim. Não havia mais nada para escrever”, declarou à BBC em 2014. “Comecei a grande tarefa de não fazer nada. Fiquei muito bem.” Em outra entrevista no mesmo ano, publicada no New York Times Book Review, disse que releu toda a sua obra “para ver se perdi meu tempo”. E encerrou citando Joe Lewis, boxeador campeão dos pesos-pesados nos anos 1930 e 1940: “Fiz o melhor que pude com o que tinha”.

ENTREVISTA

 

O canal Curta! exibe nesta quinta-feira (24), às 21h, o documentário francês Encontro com Philip Roth: Biografia de uma obra.
A entrevista foi gravada em 2014 pelo diretor François Busnel, na casa do escritor em Connecticut. No longo depoimento, Roth fala sobre sua obra literária, sobre judaísmo e antissemitismo e sobre sua aposentadoria, anunciada em 2012.

Repercussão


“É o meu escritor favorito. Na minha opinião o maior romancista americano da segunda metade do século 20. Foi esnobado pelo Prêmio Nobel embora o merecesse mais que os 10 últimos ganhadores. Estou de luto”
. Autor de novelas Aguinaldo Silva no Twitter

“Philip Roth era dos grandes de uma tradição q talvez esteja morrendo: a dos artistas que veem indivíduos como o que eles são, querem ou poderiam ser, e não só pelo que representam em sua derrota contra as fúrias históricas/coletivas”
. Escritor Michel Laub no Twitter

“Se eu tiver netos, espero e suponho que eles o lerão, e que suas vidas serão moldadas por suas palavras, como as minhas foram moldadas. Ele foi meu herói”

. Escritor Jonathan Safran Foer, em depoimento ao The Guardian

“Eu não posso morrer. Eu não li Indignação, por Philip Roth”

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Escritor James Schamus no Twitter


Palavras de Roth

“Ao me deitar, sorrio e penso que ‘sobrevivi por mais um dia’. E oito horas mais tarde, quando acordo, me espanto de novo ao perceber que chegou a manhã e continuo aqui. ‘Sobrevivi mais uma noite’, um pensamento que me leva a sorrir de novo.Vou dormir sorrindo e acordo sorrindo”
. Em entrevista para The New York Times, em 2018

“Não sou religioso nem  mantenho em casa símbolos judaicos. Os judeus americanos de minha geração não sentiram o peso da tradição”
. Em entrevista à revista Época, em 2011

“Nadar me faz pensar e me obriga a refletir sobre o que estou fazendo. Já inventei muitas histórias debaixo d’água”
. Em entrevista à revista Época, em 2011

“A cultura literária vai acabar em 20 anos”
. Em entrevista à revista Época, em 2011

“A última coisa que eu queria fazer era ser mais visível do que era. A visibilidade me irritava.
Por isso me mudei para o campo”

. Em entrevista à BBC, em 2014

“Escrever é estar errado, é se frustrar”
. Em entrevista à revista francesa Les InRocKuptibles, em 2012

“Agora tenho uma espécie de resignação em relação à realidade. Já não me parece uma injustiça tão grande morrer”
. Fronteirasweb

Na estante

Veja os livros editados no Brasil*

Adeus, Columbus e cinco contos (1959/2006) – Cia. das Letras
Círculos da angústia (1962/1974) – Expressão e Cultura (fora de catálogo)
As melhores intenções (1967/1972) – Expressão e Cultura (fora de catálogo)
O complexo de Portnoy (1969/2004) – Cia. das Letras
O seio (1972/1974) – Artenova (fora de catálogo)
Minha vida de homem (1974/1975) Artenova (fora de catálogo)
Diário de uma ilusão (1974/1980) – Francisco Alves (fora de catálogo)
O professor de desejo (1977/2013) – Cia. das Letras
Lição de anatomia (1983/1983) – LP&M (fora de catálogo, reeditado na coletânea Zuckerman acorrentado, 2011)
O avesso da vida (1986/2008) – Cia. das Letras
Os fatos (1988/2016) – Cia das Letras
Mentiras (1990/1991) – Siciliano (fora de catálogo, reeditado pela Dom Quixote, 2013, como Engano)
Patrimônio – Uma história real (1991/1991) – Siciliano (reeditado pela Cia. das Letras em 2012 e 2017)
Operação Shylock: uma confissão (1993/1994) – Cia. das Letras (reeditado em 2017)
Teatro de Sabbath (1995/1995) – Cia. das Letras (reeditado em 2017)
Pastoral americana (1997/1998) – Cia. das Letras (reeditado em 2013)
Casei com um comunista (1998/2000) – Cia. das Letras (reeditado em 2014)
A marca humana (2000/2002) – Cia. das Letras (reeditado em 2014)
O animal agonizante (2001/2006) – Cia. das Letras
Entre nós: um escritor e seus colegas falam sobre trabalho (2001/2008) – Cia. das Letras (ensaios, entrevistas e cartas)
Complô contra a América (2004/2004) – Cia. das Letras (reeditado em 2015)
Homem comum (2006/2007) – Cia. das Letras (reeditado em 2017)
Fantasma sai de cena (2007/2008) – Cia. das Letras
Indignação (2008/2009) – Cia. das Letras (reeditado em 2017)
A humilhação (2009/2010) – Cia. das Letras (reeditado em 2017)
Nêmesis (2010/2011) – Cia. das Letras

Coletânea

Zuckerman acorrentado (2011) – Cia. das Letras, que reúne os romances O escritor fantasma (1979), Zuckerman libertado (1981) e A lição de anatomia (1983)

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