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Legado de Carolina de Jesus é tema do projeto Chá com Letras desta terça (27)


A luta da mulher negra e periférica por respeito, ascensão e reconhecimento ganha abordagem histórica nos estudos da obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Autora de Quarto de despejo: Diário de uma favelada – um dos títulos mais importantes da literatura brasileira no século 20 –, ela completaria 104 anos neste mês em que se comemoram o Dia Internacional da Mulher e o de Combate à Discriminação Racial. Seu legado será tema da edição desta terça-feira (27) do projeto Chá com Letras.

O evento contará com análise de Aline Alves Arruda, doutora em literatura brasileira e estudiosa da obra da escritora. A professora destaca Carolina de Jesus como um símbolo de representatividade e resistência feminina, em especial para as mulheres negras. “Ela deixou uma marca muito grande porque veio da favela, era mãe solteira de três filhos e quase não tinha escolaridade alguma, condições de marginalidade que surpreendem até hoje. Além disso, influenciou muitas escritoras negras que vieram depois, como a Conceição Evaristo”, observa.

Em seu maior sucesso, Quarto de despejo (1960), Carolina de Jesus narra o cotidiano como catadora de lixo e moradora de uma favela de São Paulo, onde cria sozinha seus três filhos. O livro teve vendas extraordinárias logo que foi publicado e chegou a ser traduzido para cerca de 40 países. Nascida em Sacramento, no interior de Minas Gerais, a autora também apresentou um retrato de sua infância em Diário de Bitita, que narra o dia a dia de uma família negra no início do século 20.
O livro só chegou às livrarias cinco anos após a morte da escritora, em 1982.

PIONEIRA Segundo Aline, a autora teve reconhecimento precário ao longo da vida. Carolina alcançou a fama com Quarto de despejo, mas voltou ao anonimato logo depois, sem o mesmo êxito no lançamento seguinte, Casa de alvenaria – Diário de uma ex-favelada, de 1961. A professora avalia que o esquecimento da autora está diretamente ligado ao machismo e ao racismo de sua época.

“Para aquela sociedade branca e patriarcal – que perdura até hoje –, não era possível admitir que uma mulher negra assumisse o status de escritora para além do diário. Afinal, Quarto de despejo fez muito sucesso por conta de seu caráter exótico e curioso, por dar ao leitor acesso a uma vivência tão peculiar”, opina Aline. “Ela tinha um projeto literário, estruturado e esquematizado. A sociedade não aceitava aquilo”, completa.

A estudiosa ressalta que o diário não foi o único gênero literário utilizado pela autora. Ela também escreveu peças de teatro, contos, poemas, novelas e romances – muitos nunca publicados – além de ter gravado um disco de samba.
Todas as ficções criadas por Carolina de Jesus, contudo, são pouco conhecidas.

Aline avalia a influência da estética romantista sobre essas obras. A autora, afinal, tinha como referência os livros que encontrava nas ruas e pegava para ler – muitos pertencentes a um cânone literário anterior ao tempo dela, formado por autores como José de Alencar e Cassimiro de Abreu. “Os livros de Carolina não são muito realistas, mas há sempre um vestígio de questões sociais vivenciadas por ela. Em alguns romances, há críticas políticas perspicazes e a defesa da reforma agrária.”

REPRESENTATIVIDADE A retomada da obra de Carolina de Jesus se deu recentemente, a partir dos anos 2000, em especial na ocasião de seu centenário, celebrado em 2014. Seus livros passaram a ser tema de teses e dissertações nas faculdades e se tornaram leituras obrigatórias em escolas e vestibulares. Hoje, a escritora é referência e inspiração para a militância negra.

Ao falar sobre Carolina, Aline enfatiza o termo “representatividade” e se preocupa em apresentar uma visão acadêmica sobre sua obra. “Sou branca e, em nenhum momento, estou me apropriando de qualquer causa. Ao contrário, a ideia é promover o legado de uma autora que ainda é pouco conhecida pelo leitor comum”, reflete.

Segundo a professora, o objetivo do encontro é ir além do célebre Quarto de despejo e promover um debate sobre sua trajetória, o que implica também em reflexões sobre o tempo presente.
Por isso, a palestrante não deixará de fora questões latentes no contexto atual, como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), engajada na defesa das mulheres, dos negros e da população periférica.

“As duas têm histórias de vida muito semelhantes. A Marielle, assim como a Carolina, continua evocando a voz coletiva para denúncias muito importantes. Ela não será esquecida, assim como a Carolina não deve ser”, defende Aline.

CHÁ COM LETRAS: CAROLINA MARIA DE JESUS
Análise: Aline Alves Arruda. Mediação: Carol Barreto. Terça-feira (27), às 19h, na Idea Casa de Cultura (Rua Bernardo Guimarães, 1.200, Funcionários). Entrada franca, com retirada de senhas a partir das 18h30..