Uai Entretenimento

Marcelo Mirisola revisita a própria trajetória no romance 'Como se me fumasse'

Em Como se me fumasse há um pouco de Joana a contragosto, Fátima fez os pés para mostrar na choperia e Hosana na sarjeta. “Questão de estratégia”, avisa Marcelo Mirisola. “Estilo. Charme.” As citações no novo romance, ele explica, funcionam como peças de uma mesma engrenagem complexa. “Às vezes, me sinto um relojoeiro”, admite.

Oitavo romance do relojoeiro, Como se me fumasse tem um narrador que já é clássico no repertório de Mirisola. O sujeito que se descreve como esquizofrênico, psicopata e obsessivo acabou de perder a mãe, e nesse vácuo reencontra uma paixão não superada, em relação à qual alimenta a expectativa de uma volta que nunca acontece. Ou não do jeito esperado pelo narrador.

A perda e a morte são temas desse novo romance, que carrega a eterna questão da literatura de Mirisola: burlar ou não a fronteira entre ficção e realidade, entre memória e criação. É uma questão irrelevante, ele defende, e pode ser mesmo, dado que a literatura e o próprio livro têm mais relevância.
E o livro é bom.

Embalado pela perda da própria mãe, que o fez “estar sozinho no mundo, mais do que as outras vezes. Desta vez, pra valer”, o autor escreve sobre morte, amor e ódio a partir da perspectiva de um narrador em primeira pessoa. Por meio deste, o leitor vai conhecer Ruína, que é também Joana, Fátima e todos os amores de Mirisola. Ruína bate à porta do narrador no mesmo dia em que ele enterra a mãe. E perturba. Basta um beijo – que, aliás, ela jura nem ter acontecido – para o sujeito mergulhar numa tempestade interior da qual mal consegue sair e para a qual arrasta o leitor. Sim, Ruína vai voltar com o ex-marido depois de uma separação-relâmpago causada por pilhas de um controle remoto.
E o narrador vai ficar revoltado.

Lá pelas tantas, depois de constatar uma existência pontuada por angústia, tédio e tristeza, ele repassa a própria trajetória. É Mirisola falando, ou o narrador, pouco importa. Ele lembra o lançamento de O herói devolvido, no mesmo ano em que Paulo Coelho também publicava algo. O jovem que trazia “lufada de oxigênio” para a literatura brasileira, “o responsável pelo ressurgimento do conto”, avisa: “escrevo deliberadamente na primeira pessoa e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador”. Está feito.

E as citações não se limitam aos próprios romances, Mirisola também incluiu ali alguns desafetos públicos, como o Boca de Siri, de quem era amigo e que, segundo o narrador, encara o suicídio de um melhor amigo como uma licença para escrever uma obra-prima. Para a crítica, ele joga: “Tô aqui, depois de dezessete anos, e você? Tá de boas”. São digressões inseridas no meio da história, licenças não pedidas que dão um ritmo alucinante à escrita escrachada de Mirisola.
E, por fim, tem o “feicebuque”, no qual o autor é pra lá de ativo e que, no livro, é metrônomo do afeto, do amor e do ódio por Ruína.

Existe fronteira entre a ficção, a realidade e sua própria realidade?
Essa divisão ou a fronteira é irrelevante. Porque eu e minha “biografia” somos irrelevantes. Porque a realidade é irrelevante. Porque a ficção é irrelevante. E porque a única coisa que conta é a soma e o resultado de todas essas irrelevâncias. O que conta é o livro. O resto é jogo de cena, vaidade, sofisma, pistas falsas, tudo mentira.

Como é sua relação com as redes sociais? Elas o aproximam do leitor? E do quê elas o distanciam?
Se não fosse o “feicebuque” eu publicaria um livro por mês. Além de ser um instrumento de comunicação direta com os leitores, é um freio muito saudável à minha exacerbada criatividade. Sinceramente? Acho ótimo desperdiçar talento, jogar pérolas aos porcos. Mas eu posso me dar esse luxo.
Tenho aquilo que os comediantes do século passado chamavam de “obra”. No meu caso, ajuda. Evidentemente, isso não serve de régua nem de compasso para ninguém. Vejo muito talento sendo desperdiçado nas redes sociais. O aplauso e a aprovação imediata dizimam novos talentos a olhos vistos, uma tragédia.

Você escreve “quero dizer que se não fosse o prefácio da Maria Rita não conseguiria ser editado, não era nada fácil ser publicado antes da internet”. Agora é fácil?
No século passado, quando comecei, não existia aplauso fácil. Nossos demônios não dançavam na boquinha da garrafa, estavam presos dentro de nós mesmos. E se o cara não tivesse estofo, não aguentava. Ou enlouquecia, ou se matava. Ou arrumava um emprego, se casava, tinha filhos e vivia feliz para sempre.

Em determinado momento, o personagem lista algumas situações pelas quais passou: desligado, amaldiçoado, preterido, expelido.
Você se sente assim no meio literário?
Coitadinho do “meio literário”. Meia dúzia de gatos pingados destoados da realidade do país onde pensam que vivem. Só vejo manchas, espectros. Não sinto nem pena, porque não há vida, entende?

O personagem também fala de imortalidade. Escritores são imortais? A literatura é uma busca da imortalidade?
A literatura, hoje, é algo que não fede e nem cheira, perdeu a relevância. Ninguém mais dá bola. Eu ouço mortos (que são os autores que leio), e falo com mortos, que são os meus leitores, gente como eu, que não existe. Não consigo dissociar literatura da vida, então, se não existe literatura, não existe vida. E vida é condição sine qua para se morrer e alcançar a imortalidade, logo, não temos cacife sequer para morrer, imortalidade já era, está morta e enterrada.

Esquizofrênico, psicopata, obsessivo são expressões que o personagem usa pra se descrever. São grandes temas da literatura? São características necessárias do escritor?
Acho que qualquer uma dessas características serve muito bem ao candidato a escritor. Eu, por exemplo, sendo apenas um idiota, escrevi 20 livros.

Você acha que sua literatura choca? A literatura ainda incomoda? De que forma?
Olha, vou lhe dizer um treco: se diante do cenário de miséria absoluta, tédio e entorpecimento em que vivemos, se diante da erosão da personalidade individual e da estigmatização do “eu” em detrimento de um coletivo histérico e fascista, se diante da inapetência para esboçar um latido ou qualquer reação análoga, se diante da calamidade existencial da qual somos o retrato mais fidedigno, se diante da merda em que estamos atolados até o pescoço minha literatura servir para incomodar uma alma que seja, olha, lhe digo, do fundo do coração: se acontecer algo parecido com isso, serei um idiota realizado, feliz da vida.
 
COMO SE ME FUMASSE
De Marcelo Mirisola
Editora 34
172 páginas
R$ 41
.