Diálogo. Essa é a proposta de um padre – Fábio de Melo – e um historiador – Leandro Karnal – para o Brasil. No livro A quatro mãos, lançado no fim de 2017 pela dupla, que virou best-seller, o católico e o ateu debatem fé, religião e os impasses da sociedade contemporânea. Nesta época de radicalismo e ódio disseminados sobretudo nas redes sociais, os autores avisam: o pré-requisito para a boa conversa é a tolerância.
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ÓDIO - Os “narcisos”, como diz Leandro Karnal, estão mais atuantes do que nunca, sobretudo na internet. “O ódio vai aflorar mais ainda”, adverte o historiador. “Teremos um ano de polarização, com muito mais fofoca e muito menos ideias. Nesse contexto, o importante não são as ideias em si, mas se você é petralha ou coxinha”, critica.
Karnal conta que ele próprio é vítima de fake news, inverdades replicadas nas redes como informações confiáveis. “Há dois anos, quando se iniciou o processo contra Lula, eu disse que cabia justiça se houvesse provas reais ou se Lula fosse inocente. Quando ele foi condenado em segunda instância, postaram a minha frase de dois anos atrás com este título: Leandro Karnal defende Lula. Não se trata apenas de fake news, mas de má-fé. É o projeto político de um grupo que quer destruir qualquer pessoa que tenha expressão midiática e não corresponda ao interesse delas”, critica.
Por outro lado, Fábio de Melo adverte: a corrupção não é, propriamente, uma prática do outro.
TEMPESTADE - Se a intolerância e a polarização dominam a internet, há muita gente aberta ao diálogo proposto pela dupla. O livro Crer ou não crer: uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre católico foi lançado no dia 16, em Belo Horizonte. Naquela sexta-feira caótica de raios, trovões e tempestade, os autores levaram quase três horas para chegar ao Teatro Sesiminas, no Bairro Santa Efigênia, vindos do aeroporto. Mas o público não arredou pé. Senhas foram distribuídas desde a manhã. A sala ficou lotada até as 22h, quando a palestra foi encerrada.
Fábio de Melo e Leandro Karnal agradeceram a paciência do público. “Quem costuma abrir águas é o padre.
Com visões distintas sobre a fé, o padre e o filósofo têm muito em comum. Karnal foi seminarista na juventude. “Era jesuíta, passei a infância em adorações ao santíssimo, em retiros. Meu pai estimulava muito isso. Ia à missa todos os dias, era leitor contumaz da Bíblia. Fui uma pessoa de profunda fé”, revela. No entanto, ele se tornou ateu ao não perceber o “eco” de suas longas orações.
“Parecia que estava falando sozinho. Com o tempo, esse processo foi crescendo, mas não envolve nenhuma raiva ou decepção.
O ateu Leandro Karnal, que lê a Bíblia quase diariamente, é expert em santos. “Ele sabe o santo de cada dia, é muito conhecedor do catolicismo. Em nossas conversas por WhatsApp, é até engraçado, pois o Karnal tem um conhecimento que não tenho. Sabe o dia de tal santo, tal de Nossa Senhora”, conta o padre. O filósofo e historiador explica: “Sou igual a ginecologista. Estudo o que não tenho. Tenho profundo interesse por essa questão, até porque não se entende o país sem entender religião. No caso do Brasil, sem entender o catolicismo.”
SUPERAÇÃO - Naquela mesma sexta-feira, padre Fábio de Melo lançou o single Deus cuida de mim nas plataformas digitais.
Esse projeto marca a superação de momentos difíceis. Em 2017, Fábio teve de lidar com o suicídio da irmã e a síndrome do pânico. “Queria falar da grande dificuldade que foi o sofrimento de deixar de acreditar em mim, um processo muito doloroso. A síndrome do pânico é justamente isso: você desacredita de suas possibilidades, nada mais é possível, tudo é muito penoso. Isso resultou numa nova maneira de me interpretar. Quando olhei o passado, identifiquei um fio condutor: Deus me amava. Ele me encorajou, me deu a oportunidade de novo nascimento”, comenta.
O Brasil e a esperança
O senhor vê luz no fim do túnel para o Brasil?
Leandro Karnal – Vejo muita esperança, pois acho que podemos tocar um pouquinho mais no fundo. A tragédia da morte da vereadora Marielle Franco (Psol), por exemplo, vai trazer uma luz a um preço trágico de duas vidas – a dela e a do motorista – sobre um fato para o qual já estávamos anestesiados. São mais de 60 mil mortes violentas por ano no Brasil. Quando vem a morte de alguém assim, funciona como o atentado às Torres Gêmeas, aquilo acaba ganhando mais atenção. De forma alguma desejo a morte de alguém, mas, curiosamente, como se dizia na Igreja antigamente, o sangue dos mártires é a semente de novos cristãos. Não que a vereadora seja exatamente mártir, mas é uma vítima de um processo. Essa mulher íntegra lutou muito pelos direitos humanos. Quando as pessoas pararem de pensar em esquerda e direita e passarem a pensar em direitos humanos, ou seja, que o morador da favela, o presidiário, o advogado e até o político têm direitos humanos, aí vamos começar a melhorar.
Fábio de Melo – Vejo, porque descubro um Brasil que começa em mim, nas minhas relações, na lida com o meu próximo. Esse é o Brasil que transformo. À medida que vou conseguindo transformar as estruturas ao meu redor, tornando-as mais justas, mais solidárias, isso naturalmente vai virando uma corrente. Tenho a convicção de que reproduzimos em pequena escala a macrocorrupção que criticamos. Um carro que estaciono numa vaga de deficiente, uma fila que furo. Nunca tenho a tentação de pensar que não posso participar desse pecado social tão escancarado que é a corrupção. Penso na escala que me cabe. Em que proporção também sou corrupto. E é aí que acredito que pode haver mudança. A começar por mim.
Crer ou não crer. Há como responder a essa questão?
LK – Crença ou não crença são linguagens. São maneiras de interagir, de eu me posicionar diante do mundo. Elas correspondem a estados de espírito, experiências pessoais, cognitivas e biográficas. O correto seria dizer: crer e não crer. Quem crê responde a uma série de demandas de sua vida. Quem não crê também responde a uma série de demandas de sua vida. Não tenho dúvidas de que, em nosso mundo, especialmente no Brasil, a crença é mais confortável do que a descrença. Como todo mainstream, como qualquer corrente principal, é melhor você crer, pois não tem de dar tanta explicação nem para o IBGE. Não precisa soletrar para o IBGE agnóstico, ateu ou apateísta, que seria o indiferente à religião. Continuo com a sólida crença de que caráter não tem qualquer relação com religião ou ateísmo.
FM – Seria desrespeitoso responder isso, porque Deus é uma experiência que nasce naturalmente. Não é e não pode ser uma imposição dos pais sobre nós. Deve ser uma experiência que vamos tendo à medida que a gente é sensibilizado para ela. Talvez Deus esteja tão aprisionado nos discursos religiosos que esses discursos deixaram de nos sensibilizar. Precisamos ser sensibilizados para a transcendência. Isso vai ajudar a gente a viver.
CRER OU NÃO CRER
Uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre católico
. De Padre Fábio de Melo e Leandro Karnal
. Editora Planeta
. 192 páginas
. R$ 34,90.