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Geovani Martins lança 'O sol na cabeça', livro em que retrata o abismo social brasileiro

Quando criança, Geovani Martins nunca incluiu escritor no rol das profissões que poderia adotar no futuro. Não conhecia “ninguém que mexia com arte”. Nascido em Bangu, no Rio de Janeiro, ele cresceu na favela. E morou em três delas. Menino, gostava de literatura e de histórias. Decorava os quadrinhos da Turma da Mônica narrados pela avó, sua alfabetizadora oficial, e recontava para a garotada da rua. Daí pra frente, os livros foram entrando na vida de Geovani. Primeiro os best-sellers de Dan Brown e John Grisham, depois os clássicos de Machado a Drummond – esse último um marco em seu deslumbre pela escrita.

Marco que agora assume proporções literárias, pois Geovani, com O sol na cabeça, tornou-se o novo queridinho da literatura contemporânea brasileira.

O primeiro livro do carioca, que reúne 13 contos, chamou a atenção do escritor Antônio Prata, que o conheceu em uma mesa paralela da Flip, em Paraty, e mostrou os originais para a Companhia das Letras. A editora viu potencial naquele rapaz de 26 anos.

O sol na cabeça fez sucesso na Feira de Frankfurt, na Alemanha. Os direitos de tradução foram vendidos para editoras de oito países. Por aqui, ganhou edição de 10 mil exemplares, o dobro do habitual em nosso mercado editorial. Os direitos de adaptação foram comprados pelo produtor Rodrigo Teixeira. O cineasta Karim Aïnouz é o nome cotado para dirigir o futuro filme.

Assim Geovani explica o sucesso de seu livro: “Acho que é porque foi feito com verdade e inteira dedicação. Levei muito a sério esse trabalho, tive muitas preocupações na hora de escrever, de desenvolver.
Pensava que muita gente se identificaria (com ele)”.

TENSÃO
As histórias se passam na favela. No asfalto também, mas há sempre um personagem que desce ou sobe o morro de um Rio de Janeiro muito atual, cru e desigual. A tensão entre a polícia corrupta e os moradores, o trânsito de drogas morro acima e abaixo, a sensação de injustiça, discriminação, desigualdade, raiva e revolta marcam os personagens. De propósito, eles nunca têm cor nem são descritos.

“Quis fazer uma provocação. Se é uma história trivial, na rua, de alguém indo ao banco e você não fala a cor, todo mundo associa a pessoas brancas. Mas quando falo de cinco jovens que vão à praia e são parados pela polícia, todo mundo associa a pessoas negras”, explica. “E não é mentira, porque são coisas a que pessoas negras estão sujeitas.”

Rolézim, conto que abre o livro, tem linguagem mais experimental. Geovani o escreveu na época de arrastões frequentes na praia.
Não importava ter culpa ou não, todo suspeito acabava detido. Narrado em primeira pessoa, o ritmo é alucinante. “Rolézim meio que conceituou o livro, porque experimento algumas coisas nele, mas sempre tentando manter a história com o que vai puxar o interesse do leitor para depois ele pensar na linguagem. A história por si tinha que se valer”, explica Geovani.

Em Espiral, o personagem fala sobre “o quanto é foda sair do beco” e sobre o abismo entre o morro e o asfalto. Há muita raiva contida, revolta que o próprio Geovani já sentiu e da qual hoje se distancia. “Depois de um tempo, fui começando a perder o grilo com essas separações, pelo menos na minha vida pessoal. Hoje, quando tenho acesso a vários lugares, muitas vezes prefiro ficar por aqui a frequentar lugares que ficava vislumbrando quando era criança. Mas o importante é poder circular, ter a escolha de ir ou não ir”, diz.

ESPERANÇA Geovani tem pena de ver como o universo da favela é explorado de forma estereotipada ou ignorado, apesar da riqueza de narrativas estacionada ali. Mesmo assim, e apesar da situação atual de sua cidade natal, há esperança.

Morador do Vidigal, “a favela mais cara do Rio de Janeiro”, ele considera a intervenção federal um problema. Se antes moradores das comunidades cariocas sabiam onde pisavam quando se deparavam com a Polícia Militar, hoje não têm ideia de como serão tratados pelo Exército.

Agora Geovani se concentra em escrever um romance sobre a Rocinha.
Ou melhor, sobre os moradores da favela na época em que foram implantadas as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs, das quais o escritor não é grande entusiasta.

“Separei o livro em três partes: a expectativa; a instalação, quando eles invadem; e a transformação que ocorre a partir disso. Não será um livro sobre a UPP, mas sobre como as vidas podem ser transformadas a partir de eventos como esse”, avisa.


Em Rolézim, um personagem diz: “Quando eu vejo cana querendo muito trabalhar fico logo bolado”. Essa tensão entre o morador da favela e o policial corrupto está em muitos contos. Como você lida com isso?
Lido da melhor forma possível, não respondendo, evitando o contato e relatando. É o máximo que dá para fazer. A gente está numa situação complicada, as pessoas começaram a comparar traficantes com policiais. E a gente percebe que a PM deu errado quando começa a ser comparada com uma facção criminosa. Os traficantes são declaradamente foras da lei, mas a PM é um órgão de segurança que tem como dever proteger a população. Ser comparada com os traficantes é a imagem perfeita de que a instituição não deu certo e precisa ser revista.

Como você lida com a intervenção no Rio de Janeiro? Seu cotidiano mudou?

Sinceramente, moro no Vidigal, a favela mais cara do Rio de Janeiro, e a intervenção não chegou aqui. Vivo na maior tranquilidade.

Só que vejo vários amigos que moram na Maré, no Jacarezinho, na Vila Kennedy, passando por perrengues. E aí fica a questão: até onde chega a intervenção? Pra mim, não chegou. E tenho quase certeza de que ninguém vai bater na porta da minha casa e entrar, como já entraram na Rocinha e em outros lugares. Moro num prédio, tem câmera, tem porteiro. Há seis meses, isso estaria me aterrorizando de uma forma perturbadora. E sei que na rua, assim como meus personagens, estou sujeito a um monte de coisas.

Em um dos contos, o personagem é abordado pela PM, que decide que quem tem dinheiro demais ou de menos vai para a delegacia. O protagonista pensa que vai ser difícil explicar que focinho de porco não é tomada. Com a intervenção, fica mais difícil explicar que focinho de porco não é tomada?
Acho que sim, principalmente pouco tempo depois da oficialização do foro privilegiado. No fim do ano passado, teve aquela história de que qualquer crime que um militar cometesse seria julgado por outro militar. Por mais que isso seja só uma coisa simbólica, pois era o que ocorria antes, é muito forte. A gente passa a vida lidando com a Polícia Militar na rua. Agora é como se você estivesse cercado e todo mundo vira suspeito. É uma situação diferente, com um tipo de poder diferente, um tipo de conversa diferente. Não sei como vai ser, mas acho difícil acreditar que será tranquilo.

A frase que encerra o livro – “agora, enquanto desce a ladeira pra chegar na saída do morro, só consegue pensar que tudo vai ser muito diferente” – é um vislumbre de esperança?
Acredito muito na possibilidade de ser diferente e acho que isso já está acontecendo. Nos anos 1990, as perspectivas eram muito menores em tudo. No começo dos anos 2000, igual. Agora a gente está lutando, conquistando coisas em altas esferas – não só na literatura, mas na economia, nas artes em geral, nas relações internacionais. Tenho vários amigos inseridos no mercado de trabalho, amigos da minha geração mandando bem nessas profissões. A coisa está mudando de alguma forma. Lógico que é uma mudança lenta, mas ela está acontecendo e espero que seja cada vez maior. O final do livro vai muito por esse lado da mudança.

O SOL NA CABEÇA
. De Geovani Martins
. Companhia das Letras
. 120 páginas
. R$ 34,90

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