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Fabrício Marques lança 'A máquina de existir', livro de poemas em que renova sua linguagem

Desde o livro de estreia, o poeta e jornalista Fabrício Marques vem procurando um modo de “samplear” (Samplers, Relume Dumará, 2000) as palavras para achar a sua própria voz. Se nos dois primeiros livros esse esforço parecia mais evidente, e talvez por isso mesmo ainda tateante, é a partir do terceiro, A fera incompletude (Dobra Editorial, 2011), e agora com este belo e denso livro, A máquina de existir, que a poesia de Marques se firma com uma voz singular já na longa contemporaneidade da recente poesia brasileira.

O extenso poema de abertura, Minha humanidade, já empurra o leitor para o território próprio da poesia, pois nele a questão social se impõe não apenas por aquilo que denuncia, mas sobretudo pela força da linguagem. Associar engajamento social ao apuro rítmico e semântico é uma tarefa complexa e difícil. Mas, nessa máquina de produção escrita, o poeta soube equacionar como nunca fundo e forma, de modo a nos fazer recordar que a poesia (ainda) pode nos humanizar.

É perceptível neste novo livro que Marques apostou em poemas e versos de maior extensão, cuja concentração formal exige atenção dobrada para evitar se perder em repetições ou em versos frouxos, no prosaico enfim. Sabe-se que o verso livre e o poema polirrítmico, com seus acentos tônicos e átonos variados, aproximando-se às vezes demasiadamente da fala, pode parecer menos vigoroso, exigindo do poeta, por isso mesmo, um rigor talvez maior no andamento do que um poema mais condensado e breve. Alguns exemplos desse domínio formal podem ser lidos em belos poemas, como no já citado Minha humanidade, Nós, o desocidentado, Totem para o homo zapping, False start, Eu-leitor ela-língua, Felizes e Enquanto dormes. Nesse magnífico poema de 60 versos distribuídos em 15 quartetos, acompanhamos lentamente o olhar de um sujeito-lírico a velar com seus pensamentos o corpo de alguém que dorme:

Enquanto dormes, sem que percebas,reparo teu sono: teu corpo, meu mundo.a luz da arandela incide sobre a movimentaçãorochosa do granito, o quarto mudo, Diante de tanto mistério é preciso indagar sobre o que é este corpo, fora e dentro, afinal a carne é franca e por isso a repetição, a numeração, pois não existe mentira quando tudo está à flor do corpo físico:eu me pergunto: o que se passa? Teus200 ossos a me convocar em vário ritmo:a carne é franca. Ossos não mentem,a carne é franca, a repetir num rito.

Contornar a totalidade desse corpo-poema é tentar desvendar não apenas o que se passa nos sonhos daquele corpo adormecido, mas também naquele corpo que parece sonhar acordado diante de tanta beleza.
Talvez por isso a epígrafe “acordar é um sonho”, que abre o livro, enlaça o amor recolhido de quem sonha de olhos abertos. Não me parece exagero lembrar aqui um dos aforismos de Murilo Mendes do livro O discípulo de Emaús: “Deveria haver um mundo só para cada par”. De fato, Enquanto dormes parece o par perfeito de uma criação altamente realizada por Fabrício Marques. Haveria muito que dizer dessa lírica em que o poeta se recolhe para sondar os seus sonhos improváveis ou não, mas dos quais a poesia ainda é uma espécie de guardiã.

Que o poeta-jornalista nos mostre sua posição política contra as mazelas da vida urbana, dos GPS da vida, da desvalia humana, da intolerância de toda natureza, dos descasos com a poesia, enfim, tudo isso perpassa o livro nos alertando e mesmo solicitando a nossa posição diante de todas as mais-valias (Mais-valia). Entretanto, é muito provável que retornaremos mais vezes a poemas como Enquanto dormes, Trocas, Pólen e Voo (que lembra a delicadeza de Manuel Bandeira em Cartas ao meu avô). Neles, pode-se sentir que o life long learning é um agora para sempre. A poeta Lu Menezes tem razão ao notar que, nas trilhas-líricas propostas pelo livro, assuntos como o amor ou a vida ao rés do chão são dotados de singularidade poética preciosa.
Se for assim, e é o que parece, não poderemos duvidar que a máquina-coração de Fabrício tenha funcionado tão engenhosamente bem nesse conjunto de apenas 32 poemas, e que eles jamais deixarão de existir e ressoar entre os leitores de poesia.
 
A dedicação com que Fabrício Marques ao que faz é notável. Era assim, quando fomos colegas de redação e ele, editava com zelo a primeira página. De seu tempo de professor, ouvi alunos comentando, mais de uma vez, de assistir com gosto as aulas que ele ministrava. Seu livro-reportagem Uma cidade se inventa (Scriptum, 2015) foi considerado um dos melhores do gênero quando foi lançado e é um verdadeirio tratado sobre a relação de Belo Horizonte com seus escritores. Felizmente, Fabrício também se dedica a escrever poesia e, claro, de muita qualidade.

Além da humanidade, os poemas carregam a ideia da alteridade. Como a relação com o outro é determinante para o ser humano?
Quando estava escrevendo o poema que abre o livro, Minha humanidade, um amigo me contou que no Oriente, o ideograma para a palavra “humanidade” é o desenho de dois humanos. Ou seja, minha humanidade só se define na presença do outro, sozinho não há humanidade alguma. Uma vez o Milton Nascimento disse para Márcio Borges: “Quando estou diante de uma paisagem e de uma pessoa, a pessoa me interessa mais, me chama a atenção muito mais”.
Em cada pessoa há um mundo, um drama. Se não ficamos atentos a isso, muito se perde.

O título do livro e vários poemas têm um teor político acentuado. A poesia pode nos ajudar politicamente? 
Como é que chegamos até aqui? Com “aqui” eu me refiro à volta, com força, da extrema direita (não só no Brasil, no mundo inteiro). É que faltou muita coisa, mas sobretudo faltou poesia. Faltou compreensão, afeto, amor. Sobrou neoliberalismo, descuido em demasia com o meio ambiente, intolerância com as minorias e com a diversidade. Ou entendemos isso de imediato ou só iremos retroceder, o que aliás já está acontecendo. Nesse sentido, gosto de pensar a poesia como crítica não só da linguagem, mas da macropolítica, aquela que nos enreda e dita nossos destinos, e da micropolítica, aquela que fazemos todos os dias. Enfim, a poesia pode sim nos iluminar politicamente, não só como resistência a uma visão limitada de entender a vida, mas sobretudo como potência que age no sentido de aproximar as pessoas.

Em Pólen, uma das quatro seções de A máquina de existir, há um encanto com o amor. Como ainda é possível falar de amor e se expressar de maneira bem particular e sincera?
Como sabemos, esses são, desde o início, os grandes temas: Eros e Tanatos, as famosas pulsões freudianas.
O desafio é enfrentar esses temas de novas perspectivas, ainda que seja quase impossível. O amor é a maior potência. É uma revolução. É sagrado. Transtorna e transforma. Tira o melhor de nós. Olha só: o Brasil é um dos maiores países cristãos do mundo. E Cristo deixou como mandamento máximo amar ao próximo como a si mesmo. No entanto, pesquisa recente mostra que, neste país, a maioria dos cristãos é a favor da pena de morte. Alguma coisa está fora da ordem.

Como Minas se faz presente em sua poesia? 
Alguém já disse que o mineiro autêntico é aquele que saiu de Minas.
Nesse sentido, sou um mineiro não-autêntico, mas, simultaneamente, sou um mineiro provinciano, porque não consigo sair de Minas. Nasci na Zona da Mata, em Manhuaçu, depois morei em Juiz de Fora e desde 1992 estou em Belo Horizonte. Vivendo aqui mais de meio século, pude compreender que “Minas é abissal”, como diria (e disse) o Drummond, que é, ele mesmo, a vocalização, no mais alto grau, do espírito de Minas. Minas é o barroco entranhado em nossa alma, assim como os minérios, não tem como escapar. Minas também é a patriazinha, de que fala o Guimarães Rosa. Minha poesia é tudo isso e isso tudo, misturadamente. Nela, Minas é esse lugar de passagem, que comporta ao mesmo tempo interior e moderno, passado e futuro, memória e projeto.

A MÁQUINA DE EXISTIR
De Fabrício Marques
Pedra Papel Tesoura
80 páginas
R$ 38

LANÇAMENTO
Sábado (17), a partir das 11h, na Quixote Livraria e Café (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, (31) 3227-3077).
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