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Saiba o que esperar da Bienal de Arte Digital, que chega a BH em março

'Caravel', de Ivan Henriques. - Foto: Gustavo Baxter/ALICATE

Rio de Janeiro – Arte e ciência são formas distintas de interpretar o mundo e a realidade. Se a primeira busca formas de representação que lidam com os sentidos, a segunda traduz o que nos cerca por meio da razão. Embora os procedimentos sejam distintos, muitas vezes esses caminhos se cruzam e a fusão entre os dois campos tem sido cada vez mais explorada a partir das possibilidades criadas pela arte digital, dado o seu caráter técnico inerente. O cruzamento dessas duas fronteiras pode ser visto em alguns dos trabalhos expostos na Bienal de Arte Digital 2018. Com o tema linguagens híbridas, o evento está em cartaz no Rio de Janeiro, e chega a Belo Horizonte em 26 de março.

 

Pesquisadores científicos e artistas têm atuado unidos, criando obras que encantam e, muitas vezes, têm aplicabilidade. Com a junção de seus universos, esses profissionais aumentam o alcance de reflexões geradas pelas obras de arte, como a necessidade de preservação do meio ambiente e o impacto da tecnologia no cotidiano.

Ivan Henriques é um dos artistas que utilizam a ciência como mote principal. O brasileiro radicado na cidade de Haia (Holanda) se inspira na natureza para criar obras para preservar o meio ambiente. A interface Caravel é um exemplo dessa fusão entre dois “modos de ver” a realidade.
Com um design futurista, repleta de fios, tubos e estruturas eletrônicas, a obra não se limita ao aspecto plástico, pois tem a função concreta e utilitária de limpar ambientes aquáticos.

“Além das plantas que purificam a água, existem bactérias que realizam a mesma tarefa. Muitas delas ‘comem’ a poluição e excretam alguma substância, como os elétrons. Imaginei que essa dinâmica poderia gerar uma estrutura energética autossustentável”, explica o cientista-artista, também diretor do programa Estúdio Móvel Experimental (EME), no Rio de Janeiro.

Caravel tem duas estruturas robóticas, compostas por escovas de carbono, que ficam imersas na água, onde bactérias anaeróbicas são cultivadas. Elas começam a se alimentar da poluição e excretam elétrons para a parte de cima da interface, chamada de cérebro. Os elétrons geram energia, fazendo com que a obra funcione e as duas estruturas se movam à medida que o ambiente é limpo. “A máquina funciona como um animal, foi toda criada com o objetivo de purificar a água, de ajudar o meio ambiente”, destaca o brasileiro.

Ivan Henriques explica que a interface foi desenvolvida a partir de visitas a locais poluídos, em que vislumbrou a aplicação da tecnologia de célula de combustível microbiana (MFC). “Tenho ido a regiões meio tóxicas para repensar o meio ambiente.
Pensei, por que não tentamos equalizar um sistema entre a tecnologia e a natureza? Por que não usamos, em vez de fósseis, a energia dos organismos vivos?”, detalha. “Caravel pode ajudar a reduzir a poluição, que é causada por fatores diversos, como a proliferação de algas, um problema que ocorre muito na Holanda.”

PARCERIA Colaboraram no desenvolvimento da obra cientistas da Faculdade de Bioengenharia da Universidade de Gante, na Bélgica, e pesquisadores do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), no Rio de Janeiro. A equipe brasileira ajudou na criação do sistema que move a máquina. Guilherme Matos, um dos colaboradores do projeto e professor do Cefet, conta que a parceria foi extremamente positiva. “Quando ele (Ivan Henriques) chegou com essa proposta, nos deu a oportunidade de pensar no papel da ciência dentro da construção social, em como essa máquina poderia influenciar o nosso cotidiano. Ele nos mostrou que não devemos ver barreiras porque a ciência não enxerga limites”, destaca.
O artista americano Joe Davis modificou geneticamente o bicho-da-seda para criar 'Bombyx chrysopoeia', cuja seda metálica é capaz de absorver elementos radioativos. - Foto: Joe Davis/Divulgação
Para Guilherme Matos, a arte faz com que os cientistas consigam atingir o público de uma forma diferenciada. “Em algum momento, a ciência foi ficção. Sabemos que a ciência é um ato de fé, que o que move o cientista é muito mais o sentimento do que a razão.
É até muito contraditório falar isso, mas o que nos impulsiona a nos envolver em pesquisas é a paixão. Sabemos que a arte gera toda uma diversidade de sentimentos, é exatamente isso que o Ivan Henriques promove com a arte dele, ele leva ao público o que vemos dentro do laboratório”, diz.

Diana Domingues, professora colaboradora da Universidade de Brasília (UnB) no câmpus Gama, também acredita que a ciência e a arte caminham muito bem juntas. A pesquisadora tem um projeto nesse sentido.“Trabalhamos em uma plataforma que chamamos de Novos Leonardos. Ela trata como os cientistas podem sintetizar a figura de Leonardo da Vinci, que foi um cientista-artista que misturava vários tipos de arte”, conta. Em um dos projetos, buscam-se detalhes do uso de uma bengala, como o ângulo gerado com o instrumento. Depois, os dados se transformam em um projeto visual.

Para a professora, quando unida a temas científicos, a arte pode ajudar na compreensão dos trabalhos exercidos nos laboratórios. “A ciência aproveita a arte para realizar uma expansão científica, uma discussão. Você vai ter um território diferente da experimentação e ficar mais livre”, detalha. Ivan Henriques também faz comparações. “Ambas têm muito em comum, como a curiosidade.
Acho que uma das poucas diferenças é o tempo de entrega, já que eu tenho um prazo para finalizar as minhas obras”, brinca o cientista-artista.

 

BICHO-DA-SEDA HIGH TECH Joe Davis, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e do Departamento de Genética da Universidade de Harvard, ambos nos Estados Unidos, foi um dos primeiros cientistas a unir a arte e a biologia molecular. O americano de 66 anos realiza trabalhos ousados. Já inseriu informações da Wikipédia em forma genética no DNA de maçãs, por exemplo. Outra obra – esta exposta na Bienal de Arte Digital – é o casulo Bombyx chrysopoeia, feito por um bicho-da-seda modificado geneticamente.

O animal produz seda com silicateína, uma proteína mineralizada extraída da esponja marinha. Davis fundiu o gene da silicateína com o da fibroína, proteína principal da seda. “Aproveitamos o fato de a silicateína ser uma proteína ‘promíscua’, ela absorve outros materiais”, explica. A seda produzida pelo bicho modificado geneticamente passa por um processo de redução da sericina, um revestimento natural, e o animal é exposto a soluções contendo materiais metálicos, como o ouro e a prata.

 

Dessa forma, surge uma seda metálica que pode ser aplicada de diversas formas — tanto no meio artístico, como a Bombyx chrysopoeia, quanto no científico. “Ela pode ser utilizada para absorver radionuclídeos e outras substâncias nucleares que estão presentes em acidentes químicos, como os de Fukushima e de Chernobyl”, exemplifica Davis.

 

O americano é um dos maiores defensores da linguagem híbrida, em que a ciência e a arte são abordadas de forma conjunta. “Vivo entre ambos os mundos, falo as duas línguas”, destaca. Para ele, tanto a ciência quanto a arte utilizam a mesma linguagem, um dos motivos de os temas se misturarem em sua mente.

 

Davis também compara as obras criadas pelos artistas híbridos com o trabalho dos magos do passado.

“Acho que a unificação de conhecimentos faz parte do destino. Os artistas e os cientistas já estão conectados. Acho também que os artistas não podem ter medo dos algoritmos”, brinca. “Existe uma histórica e uma profunda ligação entre a matemática e a arte, e todos se esquecem disso.” 


* A repórter viajou a convite da Bienal de Arte Digital

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