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Lúcia Hiratsuka reconstrói o universo de sua infância no livro 'Chão de peixes'

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Até entrar na escola, aos 7 anos, Lúcia Hiratsuka só falava japonês. Tudo o que ela sabia do mundo tinha como ponto de partida o país que os avós deixaram em 1925, em busca de uma situação melhor, e para onde imaginavam voltar um pouco depois, já mais ricos. Mas a vida foi encontrando seu lugar no interior de São Paulo, em meio a cafezais, bichos-da-seda e caquis, e a família foi crescendo.

Uma das principais ilustradoras brasileiras, dona de um delicado traço, Lúcia nasceu no sítio Asahi, em Duartina, em 1960, e cresceu ouvindo as histórias da avó, vendo a caprichada caligrafia do avô e lendo os livros – todos muito ilustrados – que chegavam do Japão para a família. Ali, antes mesmo de entrar na escola rural, distante quatro quilômetros de casa, caminho que ela percorria a pé, a menina já sabia o que queria fazer: estudar desenho no Japão, se não encontrasse um professor por aqui.

Aos 10, ela e os irmãos que já estavam em idade escolar se mudaram com os avós para Duartina. Aos 15, foi para São Paulo, porque uma tia disse que na capital ela encontraria tudo. Fez o então colegial – ainda pensando em desenhar. Antes de entrar na faculdade de Belas Artes, essa mesma tia descobriu uma escola de desenho de moda. Ela, que já sabia costurar, arrumou o primeiro emprego numa loja de tecidos da Rua 25 de Março, onde criava modelos para os clientes.
Tinha 17. A faculdade ela pagou com a ajuda de um emprego no Banco do Brasil. E, ali, durante o curso, se deparou com a primeira frustração: ela queria, sim, desenhar, mas descobriu que queria, sobretudo, contar histórias.

SUMIÊ Em seu novo livro, Chão de peixes, que chega às prateleiras pela Pequena Zahar, ela nos remete ao tempo de brincadeiras no quintal, de fruta colhida do pé e muita história. Um tempo de coisas simples. Para ilustrá-lo, Lúcia escolheu a técnica japonesa sumiê. Na verdade, o livro nasceu como uma homenagem ao mestre Massao Okinaka, que lhe ensinou que essa arte é movimento, é a captura do essencial – do que sentimos como essencial. É simplicidade e sentimento.
“Ele falava que nenhuma pincelada pode ser sem sentimento. Mas, para esse sentimento aparecer, você não pode titubear”, conta a ilustradora, que, volta e meia, visita sua infância para criar histórias.

Em Chão de peixes, encontramos o quintal de Lúcia, ou melhor, o quintal de sua memória. Coelhos, formiguinhas, galinhas ciscando, uma libélula, grilos, vaga-lumes, a vaca num “eterno domingo”, a fogueira na qual assavam batata-doce. Tudo registrado com delicadeza por imagens, brancos e textos – um poema, uma frase, às vezes um haicai. Antes de entrarmos em seu universo, a dedicatória da autora: “Para você encontrar a vagareza de um caracol, a simplicidade dos capins e a liberdade dos peixes”. Dali, somos levados ao poema Quintal: “Na lua do meu quintal, tinha dois coelhos/ Que faziam bolinhos./ E eu/ esperando.../ Mas lá do alto/ Só vinha a chuva. / Será que os bolinhos eram de chuva?”. E o passeio segue em cada detalhe.

O peixe do título vem, possivelmente, do início de tudo.
Reza a lenda que, certa vez, sua avó desenhou um peixe no chão do sítio e ela ficou encantada.

Lúcia começou sua carreira recontando as lendas japonesas que ouvia dessa mesma avó, a Orie que anos atrás foi homenageada com um belo livro que leva seu nome e que nos conta sobre a infância dela no Japão. Quando começou a pensar na direção que daria para sua obra autoral, ela passou os olhos pela livraria e ficou com a impressão de que tudo já havia sido feito. “Entendi que não adiantava eu ficar olhando para fora, que tinha que buscar alguma coisa dentro de mim que me motivasse a contar”, explica.

Foi em sua infância e nas histórias que outras pessoas contavam dos tempos de criança que ela encontrou essa matéria-prima que transforma ora em livro para crianças já crescidas, ora para crianças menores. 


CHÃO DE PEIXES
• De Lúcia Hiratsuka
• Pequena Zahar
• 48 páginas
• Preço sugerido: R$ 75,15.