Um fixer é a figura mais importante que um correspondente internacional pode ter a seu lado. Grosso modo, ele é uma figura local, que pode atuar como tradutor, motorista e fonte de conhecimento. Muitos deles são também jornalistas. Na cobertura de conflitos, pode ser ainda a pessoa que vai colaborar para a segurança do repórter – ou provocar sua desgraça, já que há casos de fixers que “vendem” jornalistas a grupos terroristas.
Pois em setembro de 2015, às vésperas de deixar a Turquia com destino à Síria em guerra (numa jornada complicada e perigosa), a jornalista paulista Patrícia Campos Mello descobriu que havia levado um bolo. O fixer que a acompanharia estava em outro trabalho.
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Para escapar da perseguição do regime de Bashar al-Assad, Barzan havia se mudado para Istambul. Raushan, por seu lado, abandonou o curso de direito em Aleppo para viver com a avó russa em Rybinsk, distante 300 quilômetros de Moscou.
Em poucas semanas de contato diário pela internet, eles se apaixonaram. Encontraram-se a primeira vez em Istambul.
ESTADO ISLÂMICO Recém-casados, decidiram ir para Kobane, onde Barzan esperava encontrar sua família. Lá chegando (boa parte do trajeto foi feita num carro funerário), em outubro de 2014, descobriram que a cidade era um lugar quase fantasma. Kobane estava sob o domínio do Estado Islâmico.
A história dos dois “é a vida na guerra apesar da guerra”, comenta Patrícia. Repórter especial da Folha de S.Paulo, com experiência em coberturas internacionais – ela atuou em conflitos no Iraque, Líbia e Quênia –, a jornalista tinha a intenção de chegar a Kobane para ir atrás da família do pequeno Alan Kurdi.
No início de setembro de 2015, o mundo parou para chorar quando a imagem do corpo do menino sírio de 3 anos encontrado na praia turca de Ali Hoca Burnu ganhou divulgação planetária. Alan, sua mãe, Rihan, e seu irmão mais velho, Galib, morreram numa travessia de bote. Tentavam ir da Turquia para a Grécia, seguindo o caminho de milhares de sírios em fuga da guerra. Somente o pai sobreviveu.
Os avós maternos de Alan viviam em Kobane, daí a jornada de Patrícia até a cidade, que ficou conhecida como símbolo da resistência curda. Entre setembro de 2014 e janeiro de 2015, Kobane ficou sob o jugo do Estado Islâmico – Barzan e Raushan permaneceram ali por quase três dos quatro meses em que a cidade foi atacada continuamente.
Lua de mel em Kobane não é simplesmente uma história de amor em tempo de guerra.
“O livro traz uma história de amor, mas, se você não explicar quem são os curdos, sunitas, alauitas, não faz o menor sentido. A guerra da Síria é muito complicada. E é uma guerra de procuração, pois todas as potências têm interesse lá dentro. Além do mais, ninguém sabe quem são o curdos, porque eles não têm país. Há uma ignorância do mundo todo em torno deles”, afirma Patrícia.
Assim que decidiu escrever o livro, a jornalista voltou à Síria – em março de 2016. “Idealmente, queria ter ido uma terceira vez, mas, depois que fecharam a fronteira, ficou superdifícil entrar”, comenta. Na segunda viagem à região de Kobane, Patrícia e o fotógrafo Fábio Braga realizaram pelo menos 40 horas de entrevistas em vídeo – material que a jornalista ainda não sabe se vai aproveitar em um outro projeto. Mas, para finalizar o livro, já de volta ao Brasil, teve que se valer dos mesmos artifícios que Barzan e Raushan ao se conhecer. Foram muitas entrevistas via Whats-App e Facebook, sempre que a internet permitia.
Para Patrícia, o mais difícil de uma cobertura de guerra é conseguir ouvir todos os lados, “separar o que é propaganda de guerra e o que é fato.” Chegar aos lugares é sempre um grande complicador.
A narrativa de Lua de mel em Kobane vai até setembro de 2017. De lá pra cá muita coisa mudou – os curdos voltaram a ser atacados recentemente. Mas outras permaneceram as mesmas. Barzan e Raushan continuam juntos, atuando como repórteres, mas separados fisicamente pela guerra.
REFÚGIO NA FRANÇA Desde 2011, 4,9 milhões de sírios abandonaram, às pressas, seu país. A metade está na Turquia, enquanto outra parte se divide, principalmente, entre a Europa, Líbano e Jordânia. Joude Jassouma, de 34 anos, é um dos 10 mil sírios que conseguiram asilo na França.
Professor de francês, ele vive atualmente com a mulher e a filha em Martigné-Ferchaud, pequena cidade da Bretanha, no Norte da França. Eu venho de Aleppo (Vestígio/Intrínseca, 160 páginas, R$ 37,90) é o relato em primeira pessoa desse sobrevivente.
Escrito com a jornalista Laurence de Cambrone, o livro acompanha a saga do autor a partir de 2015, quando a guerra civil afundou a maior cidade síria. De Aleppo, Joude percorreu o roteiro habitual de milhões de refugiados: foi para a Turquia, para depois chegar à Grécia, na arriscadíssima travessia de bote inflável.
Dos campos de refugiados da ilha grega de Leros o professor relata sua trajetória até a chegada em território francês.
LUA DE MEL EM KOBANE
Autora: Patrícia Campos Mello
Companhia das Letras (194 páginas)
Preço sugerido: R$ 49,90