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Haruki Murakami traz trama complexa e linguagem pop em seu novo livro

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Você sente uma súbita vertigem. Você recobra o equilíbrio, apoia-se na parede, que se abre e, do outro lado, nota que se encontra em um lugar desconhecido. Sua consciência titubeia, você toca seu corpo para saber se está sonhando ou se terá que lidar com uma realidade muito estranha.

A resposta é que não há resposta. Não vale a pena buscar compreender todos os enigmas de Crônica do pássaro de corda, romance de Haruki Murakami lançado recentemente no Brasil. Vale a pena, certamente, encarar as 766 páginas da história de Toru Okada, narrador e protagonista criado pelo escritor japonês, que o submete a situações surrealistas, como atravessar a parede do fundo de um poço e surgir no quarto 208 de um hotel.

Mas vamos por partes. Para quem desconhece a obra de Murakami ou não ouviu falar desse escritor de 69 anos, ele é um fenômeno. Estreou em 1979 com Ouça a canção do vento. Em 1986, deixou seu país, fixando residência nos Estados Unidos depois de viver um período na Europa.
Seus livros vendem milhões de exemplares no Japão – leitores fazem fila nas livrarias como se fosse o lançamento do novo iPhone – e há anos figura nas listas de possíveis laureados do Nobel.
 
 
Os principais motivos para tanto sucesso são o fato de seus livros estabelecerem uma ponte entre a cultura ocidental e a oriental, o que tem forte apelo na sociedade contemporânea japonesa, e a capacidade de misturar as mais diversas influências para criar narrativas muito singulares e muito cativantes.

Lançado no Brasil pela Alfaguara, Crônica do pássaro de corda foi escrito em 1995, mas os fatos narrados ocorrem entre junho de 1984 e dezembro de 1985. A trama é praticamente indescritível. Mais ou menos, conta a história de um sujeito de 30 anos que largou o emprego e está “dando um tempo”. Só que seu gato desaparece, sua mulher o abandona, ele conhece duas irmãs videntes, uma delas invade seus sonhos, ele faz amizade com uma vizinha adolescente com quem especula a respeito da morte, passa horas no fundo de um poço, uma senhora desconhecida lhe compra roupas novas e lhe oferece dinheiro etc.

Sim, de fato, é insólito. E há muito mais. A estranheza, as situações-limite e o inusitado são apenas um dos elementos da linguagem de Murakami. Nesta Crônica, os fatos se sucedem de maneira vertiginosa.
O fio da narrativa, de princípios detetivescos, é sempre rompido por narrativas paralelas, deslocamentos de ponto de vista, variações temporais, mas que, incrivelmente, são pontos de conexão de uma grande teia. A escrita direta e coloquial de Murakami, somada à maestria em criar suspense e surpresas, é absurdamente cativante e, mesmo as muitas histórias paralelas e as tramas inconclusas não tornam a narrativa menos atraente.

A linguagem fragmentada e frequentemente inconclusa de Crônica do pássaro de corda reflete os temas e reflexões propostos pelo autor. No livro, há críticas sobre política, constatações a respeito da sociedade contemporânea japonesa e seu passado, indagações acerca das relações afetivas e sociais, mas, sobretudo, especulações filosóficas a partir da noção de realidade.

A história se passa em meados da década de 1980, momento de grande crescimento do Japão, que se abria para o mundo e, abraçando a máxima eficiência dentro da lógica capitalista, conquistava mercados. Esse movimento econômico e político teve como consequência uma enorme ocidentalização da sociedade, que abandonou hábitos e tradições japoneses para adotar o estilo apátrida do capitalismo globalizado. Assim, a busca por uma identidade é um dos temas centrais de Crônica do pássaro de corda. Não só o protagonista, mas outros personagens vivem sem rumo, em busca de se encontrar ou mesmo sem saber o que procuram.

A tentativa de criar para si uma nova maneira de ser é explícita, em diversos personagens, pela troca de nome. Toru Okada é chamado de Pássaro de Corda pela amiga adolescente May Kasahara, que, por sua vez, adotou esse nome depois de abandonar o de nascimento. A vidente Malta Kano e sua irmã Creta Kano escolheram o nome de ilhas.
Creta, posteriomente, abandona seu segundo nome, sendo referida como “a mulher que se chamava Creta Kano”. Outros dois personagens, que não querem ser reconhecidos, recebem de Okada a alcunha de Canela e Noz Moscada.

Há também inúmeras menções a máscaras, como se a identidade – e a realidade – se escondessem por trás de algo, que não se deixa revelar. “Mesmo quando você acha que deu certo, que conseguiu se tornar uma nova pessoa, por trás dessa fachada você continua sendo o mesmo de antes; e a qualquer momento seu velho eu pode mostrar a cara e dar um alô”, diz May Kashara para Pássaro de Corda.

A ideia de realidade, porém, é a mais forte da obra. Marakami explora o conceito em suas várias concepções, usando referências, mesmo sem as mencionar explicitamente, de Descartes, do positivismo, da linguagem de Heidegger e da psicologia. Os personagens transitam em universos estranhos, no limite entre a consciência e o sonho, deixando clara a influência surrealista na construção da narrativa e dos personagens. “Para pensar na realidade, achei melhor me afastar o máximo possível dela”, ou “eu tinha a impressão de que a realidade se perdera e estava perambulando em algum lugar”, diz o protagonista Toru Okada. Sua mulher, Kumiko, também explicita sua visão sobre a realidade, relativizando-a: “Há uma pequena diferença entre as coisas que eu acho que são realidade e as coisas que são realidade de fato”.

A origem latina da palavra realidade (realitas) tem o significado de “coisa”. E o termo é usado com frequência ao longo da narrativa. Ao mesmo tempo, coisa traz em si uma ideia de imprecisão, que colabora para a abordagem que não distingue claramente o que é real, o que é sonho, devaneio ou imaginação. Mesmo na tentativa de entender o que se passa de maneira racional, o personagem se vê, em diversos momentos, impotente para captar a “realidade” que o cerca: “Para mim era praticamente impossível explicar de maneira lógica o que estava acontecendo com minha vida nos últimos tempos”.

Depois de passar por uma experiência traumática, Okada se vê enredado em uma teia de personagens e se deixa levar por uma sucessão surrealista de acontecimentos.
Ele se perde e, literalmente, vai ao fundo do poço para depois ir se encontrando e reunindo os fragmentos de seu eu. Em certo momento, diz uma frase que resume a ambiciosa construção proposta por Murakami: “Os fatos estavam entrelaçados de maneira confusa e complexa, como peças de um quebra-cabeça tridimensional. Um quebra-cabeça em que a realidade nem sempre era verdade, e a verdade nem sempre era realidade”.

Trecho
“Seu canto, ouvido apenas por algumas pessoas, as conduzia para inevitáveis catástrofes. Nesse mundo do pássaro de corda, o livre-arbítrio não existia (...). As pessoas realizavam atos que não desejavam e seguiam direções que não haviam escolhido, como bonecos de corda postos em uma mesa. Quase todos que ouviram o canto do pássaro de corda se depararam com a ruína e a perdição. Muitos morreram. Caindo da mesa como bonecos de corda”
 
 
CRÔNICA DO PÁSSARO DE CORDA
. De Haruki Murakami
.  Alfaguara
. 768 páginas
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R$ 69,90
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