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Zuza Homem de Mello disseca a trajetória do samba-canção em livro

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Foram 13 anos de pesquisa até que o musicólogo e pesquisador Zuza Homem de Mello concluísse Copacabana – A trajetória do samba-canção (1929-1958), um verdadeiro tratado sobre o cancioneiro popular brasileiro. Nesse período, surgiram ídolos de massa, cantou-se histórias de desilusão e dores de cotovelo foram repetidas pelas rádios á exaustão. Surgido nas boates do Rio de Janeiro, o samba-canção rompeu as fronteiras de Copacabana e se tornou o gênero mais importante e longevo da música brasileira entre 1946 e 1958, quando nasceu a bossa-nova.

 

A obra descreve com riqueza de detalhes a transição do velho samba, nascido no início do século 20, para a bossa-nova. Um esmiuçador de fatos, destrinchando boatos e revelando histórias, Zuza remonta um período sem se preocupar com o anedotário da boemia carioca. “Não se trata de um livro sobre a vida noturna do Rio. É sobre o samba-canção.”

O menino que passa férias em Copacabana nos anos 1950 descreve a região que colocaria o Brasil no mundo. “Mais do que um bairro, mais do que uma praia, era uma agregação de seres que se entendiam, num lugar autônomo onde se vivia regiamente sem atravessar o túnel, sem ver a cor do Leblon ou Ipanema”, finaliza o primeiro capítulo. “Copacabana tinha música própria, o samba-canção.”

O que nascia nas boates de Copa, depois do fechamento dos cassinos por ordens do governo federal, era grande demais para ser apenas música de boate.

As antigas orquestras, de repente, eram dissolvidas em um ato político e seus músicos migravam para os pequenos palcos dos hotéis. Um novo formato de canção se apresentava, primeiro, para uma elite intelectual, até surgirem “os fracassados do amor”. Um dos capítulos mais iluminados se chama “O refúgio barato dos fracassados do amor”.

 

Os cantores populares que bebiam na mesma fonte de sambas-cancionistas cheios de classe, como Dick Farney, Johnny Alf e Tom Jobim no início de carreira, vão surgindo com os primeiros cases de sucessos fonográficos nacionais, expandindo o território do gênero. Ao mesmo tempo em que nomes como Herivelto Martins, Cauby Peixoto, Angela Maria, Dolores Duran e Adelino Moreira se tornavam os primeiros ídolos de massa, recebiam nos mesmos ombros uma carga pesada de preconceito da qual jamais se livrariam.

 

 

Ao escrever separando uns de outros, e mostrando que samba-canção não é um aquário com peixes da mesma cor, Zuza também se coloca. “Os filhotes da vertente mais conservadora do gênero, menos preocupada com a inovação, geraram o que mais tarde ficou conhecida como música brega, depois de ter sido taxada de cafona.” O autor segue dizendo que, “por trás desse desprezo fácil, ignora-se a necessidade de uma decomposição mais acurada dos três componentes essencialmente musicais – ritmo, harmonia e melodia – bem como do quarto elemento que distingue a canção, a letra”. Ele destaca o que considera essencial. “As pessoas precisam ouvir sobre aquilo de que falam.” A força da interpretação também tem peso fundamental na distinção entre homens e meninos, e é aqui que Zuza começa a falar de Herivelto Martins.

“O grande público, que não estava nas boates, não queria saber se o autor estava fazendo uma modulação. A periferia recebe a voz desses cantores pela Rádio Nacional.”

O samba-canção, contaminado pelo bolero latino-americano que inventaria a dor do amor em espanhol, não se trata de uma música de amor, mas do antiamor, ou o desamor, do fracasso, do amor que nunca foi. Um rapaz que compôs muito samba-canção, mas que não é lembrado assim, foi Noel Rosa. E a descrição da obra de Noel por seus dois biógrafos citados por Zuza, João Máximo e Carlos Didier, é a descrição do próprio samba-canção. “... a visão da vida de Noel, em relação ao amor, nada tem de romântica. Não acredita que possa ser amado. Talvez nem acredite que alguém possa amar alguém, o amor sendo sustentado pela mentira, a artimanha, a falsidade, a simulação.”

FRACASSO Um sentimento emocionalmente niilista e ao mesmo tempo arrebatador em versos como “Ninguém me ama, ninguém me quer/ Ninguém me chama de meu amor/ A vida passa, e eu sem ninguém/ E quem me abraça não me quer bem/ Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso/ E hoje descrente de tudo me resta o cansaço/ Cansaço da vida, cansaço de mim/ Velhice chegando e eu chegando ao fim”, de Ninguém me ama, de Antonio Maria e Fernando Lobo, lançada em 1952.

Ou em “Negue seu amor, o seu carinho/ Diga que você já me esqueceu/ Pise, machucando com jeitinho / Este coração que ainda é seu/ Diga que o meu pranto é covardia/ Mas não se esqueça/ Que você foi minha um dia/ Diga que já não me quer/ Negue que me pertenceu/ Que eu mostro a boca molhada/ E ainda marcada pelo beijo seu”, de Negue, popularizada por Nelson Gonçalves.
“O samba-canção nunca será nem sequer politizado, nunca entra nisso. Ele será romântico no sentido negativo, se tornará a música dos perdedores.”

Ao falar de Noel, Zuza vai para um aspecto técnico delicado. Tocar samba-canção não é como tocar samba, mas muitos músicos ainda não sabem disso. “Os regionais que acompanhavam Noel não sabiam tocar samba-canção. Até hoje é complicado encontrar músicos que não repicam onde não devem repicar. Apesar de a célula rítmica ser a mesma, o samba-canção é mais lento, mais arrastado, e a tentação sobretudo de músicos cariocas é sair quebrando.”

O capítulo “Os modernistas” fecha a obra com mais reflexão sobre o reduzido mas nunca terminado período do samba-canção. “Quando Tom Jobim vai conhecer João Gilberto, ele percebe que vai começar a fazer o mesmo. E Tom fazia samba-canção antes da bossa A partir daquele momento, Jobim se aparta do samba-canção e começa a fazer bossa.” E então, uma nova era começa. “O samba-canção faz a transição para a modernidade.” Uma percepção nas sutilezas que vale como a chave de ouro. 

 


COPACABANA – A TRAJETÓRIA DO SAMBA-CANÇÃO
• De Zuza Homem de Mello
• Editora 34
• 511 páginas
• R$ 80

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