Trabalho de Nise da Silveira 'ocupa' centro cultural em São Paulo

A médica e terapeuta carioca é tema de ampla exposição com documentos, fotos e filmes sobre sua vida, além de obras dos internos do Museu de Imagens do Inconsciente

Estadão Conteúdo
Ideias de Nise da Silveira revolucionaram o tratamento psiquiátrico no Brasil - Foto: Leo Aversa/divulgação

Do ateliê criado por Nise da Silveira (1905-1999) nos anos 1940, no Centro Psiquiátrico Pedro II, saíram quase 400 mil trabalhos – todos eles parte do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, também fundado por ela. Essa instituição segue viva, ganhando novas obras dos frequentadores que ainda encontram ali um espaço de livre expressão.

Saíram obras e artistas. Mas esse não era o objetivo final daquele setor de terapia ocupacional. O que se buscava era o tratamento humanizado de pessoas em sofrimento psíquico. Essa é a maior contribuição de Nise, psiquiatra que se autodenominava rebelde. Uma alagoana que, aos 15 anos, entrou para a faculdade de medicina, aos 21 se formou com outros 257 médicos – todos homens –, foi presa como comunista por Getúlio Vargas, voltou à ativa depois da anistia, revolucionou a psiquiatria da época, conheceu e se correspondeu com Jung e ajudou milhares de clientes – ela não gostava de chamá-los de pacientes – a organizar seu caos interior e a expressar seus sentimentos, angústias, dores e desejos.

Seu trabalho no Engenho de Dentro, que, quando ela chegou, contava com 2 mil internos (muitos deles tratados depois nos ateliês de pintura, mas também de modelagem, marcenaria, bordado, etc.), ganhou mostra em São Paulo. A Ocupação Nise da Silveira, em cartaz no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, fica em cartaz até 28 de janeiro. São documentos, fotografias, vídeos, filmes e obras dos internos acompanhadas de suas histórias.

Há fotos de Nise na infância, na faculdade, em casa.
Reproduções de cartas dela para a mãe e um poema para o pai. Há vídeos com depoimentos de pessoas que a conheceram e foram influenciadas por ela e por suas ideias. Informações sobre a prisão. Mais fotos. Os ateliês, as festas. A cumplicidade entre ela e seus clientes. O tratamento respeitoso expresso no olhar de cada um.

A história dos internos mais conhecidos também ganha destaque. Lemos num painel, por exemplo, a trajetória de Adelina Gomes (1916-1984), que se apaixonou aos 18, não teve a aprovação da mãe, foi se retraindo e retraindo até ser internada aos 21 com o diagnóstico de esquizofrenia. Até sua morte, produziu 17,5 mil obras.

Emygdio de Barros, Raphael Domingues, Fernando Diniz, Carlos Pertius, Isaac Liberato. Estão todos ali, em fotos e registros biográficos, e nas paredes – no primeiro andar da mostra, são expostas suas telas. Já no térreo, o visitante pode ver obras de pacientes contemporâneos e participar de atividades no ateliê.

VÍDEO Ainda no primeiro andar, vemos o vídeo gravado no congresso em Zurique, importante momento da carreira da médica, e Posfácio – Imagens do inconsciente, documentário iniciado em 1986 por Leon Hirszman (1937-1987) e concluído depois da morte do cineasta por Eduardo Escorel. Apresenta, ainda, a animação Estrela de oito pontas, dirigido por Marcos Magalhães sobre desenhos de Fernando Diniz.

Mais adiante, acompanhamos sua relação com Carl Jung (1875-1961) e vemos reproduções em tecido das mandalas pintadas pelos internos. Um painel mostra os grupos de estudo de Jung criados por Nise.
A maior área da exposição é dedicada aos animais, tidos pela médica como coterapeutas. Há, várias fotos de cães nos hospitais, com os internos, e fotos dela com seus gatos.

“Nise da Silveira foi uma grande pessoa, uma das mais autênticas e coerentes que conheci. Com ela, aprendi o respeito às questões do outro, a entender que o ser humano em sofrimento psíquico deve ser tratado com atenção e carinho”, comenta Gladys Schincariol,que, ao se formar em psicologia, em 1973, procurou Nise para um estágio. Nunca mais voltou para Campinas e é hoje coordenadora do Museu de Imagens do Inconsciente.

Duas felizes coincidências. Este mês, a Unesco declarou os arquivos pessoais de Nise, quase 50 mil itens que estão no museu e serviram de base para essa mostra, como Memória do Mundo. E esse arquivo em breve estará disponível, com patrocínio do Itaú Cultural, para consulta na internet. .