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Jornalista equatoriana lança 'Lama', livro-reportagem sobre a tragédia de Mariana

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Em um continente dividido pelo idioma, que contribuiu para um distanciamento cultural entre Brasil e demais países da América Latina, a exploração do solo é o que nos deixa em situação de igualdade – e fragilidade. Nos últimos cinco séculos, a mineração fez diferentes regiões se alternarem como grandes potências do continente: da prata que fez da boliviana Potosí a cidade mais rica do planeta no século 17 à corrida do ouro em Minas Gerais – que transformou Ouro Preto em uma das mais populosas das Américas no século seguinte –, passando pela exploração de diferentes minérios que ainda constituem boa parte do produto interno bruto de Bolívia, Chile, Colômbia e Peru.

Entretanto, essa realidade tão comum aos povos do continente não foi suficiente para despertar a atenção dos latino-americanos sobre a maior tragédia socioambiental da história: o rompimento da barragem da Samarco, que, em 5 de novembro de 2015, despejou 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre Bento Rodrigues, em Mariana, deixando 19 mortos e um rastro de destruição pelos 663 quilômetros do Rio Doce até chegar ao mar.

“Tenho a impressão de que a tragédia de Mariana, pelo menos na América hispânica, não recebeu a cobertura merecida dos meios de comunicação. Houve gente que pensava que minha reportagem era ficção, um conto”, conta a jornalista equatoriana Sabrina Duque, que acaba de lançar Lama, livro-reportagem em espanhol sobre a tragédia de Mariana – ainda inédito no Brasil.
 
 
Finalista do prestigiado Prêmio Gabriel Garcia Márquez, em 2015, com a reportagem “Vasco Pimentel, o ouvidor”, publicada na revista peruana Etiqueta Negra, Sabrina morou no Brasil e vive atualmente na Nicarágua. Depois de um ano e meio de pesquisas, viajou a Mariana no primeiro semestre de 2017 para criar um dos primeiros relatos estrangeiros sobre a tragédia.

Em entrevista ao Pensar, a escritora equatoriana fala do desafio em relatar um Brasil além do eixo Rio-São Paulo, da convivência com os moradores de Bento Rodrigues e da dificuldade dos países latino-americanos em criar leis mais rígidas para evitar que ocorram novos desastres.

ENTREVISTA

Em entrevista ao diário equatoriano El Telégrafo, você falou sobre esse Brasil além do eixo Rio-São Paulo, oculto aos olhos dos estrangeiros. A tragédia de Mariana ajudou a revelar a realidade deste outro Brasil?
Creio que este outro Brasil segue sendo pouco conhecido e o país, aos olhos de um estrangeiro médio, não passa de um cartão-postal, um país homogêneo, festeiro, futebolista. Ademais, tenho a impressão de que a tragédia de Mariana, pelo menos na América hispânica, não recebeu a cobertura merecida dos meios de comunicação, tendo em vista a magnitude do que ocorreu. Houve gente que pensava que minha reportagem era ficção, um conto. Na apresentação do livro, fiquei surpresa também que uma jornalista equatoriana que estava na plateia tenha ficado assombrada com a história ao ponto de se perguntar: como eu não me tinha inteirado disso?.

O desastre de Mariana teve cobertura extensa da mídia, especialmente nos meses seguintes ao rompimento.
Lama chega dois anos depois do desastre. O que o livro nos traz de diferente do noticiado na mídia brasileira e internacional?
A cobertura foi extensa e eu a acompanhei com interesse. Mas houve um momento em que, por razões óbvias, passou a se concentrar no processo judicial. Cheguei um ano e meio depois e, ainda que a tragédia ambiental também apareça no livro, o que quis contar foi a tragédia humana. O que acontece quando o anormal se torna a normalidade? O que ocorre durante a longa espera por uma solução? Encontrei uma cidade dividida e testemunhei o acosso aos refugiados, que se converteram, aos olhos de várias pessoas em Mariana, no símbolo dos problemas econômicos da cidade.

Como surgiu seu interesse em escrever sobre o desastre de Mariana? 
Quando o desastre ocorreu, meu orientador estava em Mariana – onde tem casa e vive parte do ano –, com o celular desligado e sem internet porque estava trabalhando em uma tradução. As notícias que chegaram no início falavam de um deslizamento de terras em Mariana. Até então, este professor tinha nos falado com tanto carinho da cidade que na minha cabeça era um lugar idílico.
A descrição posterior, com a chegada dos refugiados, me deu a ideia de ir para lá com o intuito de contar o que havia se passado com essas pessoas.

Como foi o seu trabalho de campo?
Passei um ano e meio lendo as notícias sobre o tema e um dia não pude mais postergar. Viajei a Mariana para investigar, conversar, visitar as ruínas e tentar entender o que estava se passando com as pessoas naquele momento e contrastar essa realidade com as lembranças do que havia sido suas vidas antes do desastre.

Em Bento Rodrigues, como estabeleceu sua relação com os personagens? Os mineiros têm a fama de ser desconfiados. Ser estrangeira criou alguma resistência?
Cheguei com a vantagem de ter um contato por meio do meu orientador no mestrado. Assim, a primeira pessoa com quem falei sabia que eu vinha recomendada por um conhecido. Mas houve muitas outras pessoas com quem falei e nenhuma se mostrou reticente. Creio que todos queriam contar sua versão da história. Talvez necessitassem desabafar.

Você abre o livro contando a história da Paula. Como foi seu critério para a escolha dos personagens?
Abri com a Paula porque o seu ato de valentia me impressiona até hoje.
Uma mulher que arrisca a vida para salvar sua cidade. Uma heroína de verdade. Quando terminei de fazer as entrevistas, juntando todos os testemunhos, ficou óbvio para mim que devia começar por ela: sua falta de egoísmo é gritante. Tentei escolher vozes que somassem. Está o agricultor, está o líder, está a heroína, está a velhinha que sabe que nada será como antes. E também estão o prefeito e o dono de hotel e os diversos pontos de vista que convivem na cidade.

O que a história desses personagens pode nos revelar sobre o tamanho da tragédia?
Muitas coisas. Sobre o ser humano e sobre o planeta. A dor de perder uma vida inteira, ainda que permanecendo vivo; a coragem de recomeçar, ainda quando se está nos últimos anos da vida; a importância do cuidado com o meio ambiente.

Você é de um país minerador e transita por países vizinhos onde a mineração também representa boa parte da riqueza. Você acredita que a tragédia de Mariana acendeu o sinal de alerta para a América Latina, para que haja regras mais rígidas para a extração? 
Lamento dizer que não. Há muita resistência social na América Latina frente ao avanço da mineração, mas os governos parecem não ter vontade de responder adequadamente a essas inquietudes.

TRECHO

“As piores tragédias da indústria da mineração se leem como um ensaio sobre a claustrofobia.
Na maior parte dos casos são histórias sobre homens aprisionados sob a superfície, mineiros aos quais podemos imaginar em uma caverna escura e úmida, rezando para que o socorro chegue antes que lhes acabe o oxigênio ou que desmorone o túnel. Mas, o acidente mais grave da história da mineração no planeta ocorreu sob um sol brilhante, com um céu límpido, quando uma enorme corrente de lama atravessou montanhas e, aproveitando-se do leito dos rios, cobriu duas cidades em menos de três horas para se derramar, dias mais tarde, no oceano Atlântico, depois de arrastar pessoas e vacas, porcos, cavalos, cachorros, gatos, galinhas, patos, peixes, sapos, pássaros, larvas e milhares de espécies vegetais endêmicas de dois estados brasileiros: Minas Gerais e Espírito Santo. (...) Os rios morrem em longas agonias, depois de décadas de maltrato, como o Ganges na Índia, abrumado de cadáveres em decomposição, ou o Salween, no sudoeste asiático, repleto de metais pesados e abandonado pelos peixes. Quando um rio chega ao ponto em que não há mais peixes, mais algas, mais nada, passou tantos anos apodrecendo que há tempos era visto como um cadáver em vida. O rio Doce teve morte súbita”

Trecho do primeiro capítulo de Lama, ainda inédito no Brasil. Tradução da autora.
 

LAMA
De Sabrina Duque
Turbina Editoria
61 páginas

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