Escrito ao longo de três décadas, materializa-se, enfim, o mais grandioso projeto de Ariano Suassuna

Dividido em dois volumes, 'Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores' foi definido pelo autor como 'Autobiografia musical, dançarina, poética, teatral e vídeocinematográfica'

Fellipe Torres
Ariano Suassuna (1927-2014). - Foto: Divulgação
Ciranda de personagens, espetáculo de circo, “castelo de cartas-espetaculosas”. Epopeia, ópera total, obra definitiva, poema-heroico. Mesmo para pesquisadores, familiares e discípulos, não há palavras muito precisas – ou há palavras em demasia – para classificar o livro póstumo do multiartista Ariano Suassuna (1927-2014). Ele próprio não foi econômico ao qualificá-lo no subtítulo da obra: “Autobiografia musical, dançarina, poética, teatral e vídeocinematográfica”. Recém-publicado pela Nova Fronteira, Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores é dividido em dois volumes: O jumento sedutor e O palhaço tetrafônico. Escrito, ilustrado e reescrito nos últimos 33 anos de vida do poeta paraibano, ostenta fôlego proustiano, engenhosidade linguística roseana e estética armorial, com suas ilustrações inspiradas em arte rupestre.

Em narrativa marcada pela polifonia, o dramaturgo combina vozes de um sem-número de personagens, muitos deles inspirados em figuras reais. O principal deles é Pantero (ou Antonio Savreda), cuja ambição é conquistar a glória literária. Esse revezamento de criaturas, muitas delas já pertencentes ao universo de Suassuna, dá-se por meio de um misto de gêneros literários.
“É um formato bem peculiar. Ariano achou uma forma nova, inexplorada no mundo, mas usando elementos da cultura popular brasileira. O livro todo é um espetáculo de circo, com elementos do teatro e cartas transformadas em monólogos. De certa forma, até lembra algo de O auto da Compadecida, quando o palhaço anuncia a estrutura da peça”, compara o escritor Raimundo Carrero, seguidor de Ariano desde muito e autor de um dos textos da contracapa. Para ele, Suassuna de fato se apoiou na própria vida para construir o romance. “É uma autobiografia no sentido de revisão da obra, revisão do seu espírito de escritor e dos temas da vida pessoal. Nela, vemos a consolidação da estética armorial e vemos os movimentos de cultura popular sendo levados para a literatura e para a cultura erudita”, completa.
 
 
Tanto a demora para a publicação do romance quanto o apuro estético dos dois volumes foram fruto de exigências feitas por parte da família de Ariano. Até há pouco tempo com seus escritos divididos entre duas editoras, o dramaturgo passou a ter a obra completa sob a tutela da Nova Fronteira. Isso só foi possível graças a algumas contrapartidas: o processo de editoração de Romance de Dom Pantero partiu inteiramente do Recife, feita por pessoas ligadas a Suassuna, e foi dada a garantia de, em um futuro breve, haver a publicação de novos títulos, alguns deles inéditos. “Sempre conversamos muito sobre esse livro e sobre toda a obra dele. Quando aconteceu o ‘encantamento’ de papai, demorou esse tempo todo para a gente ter o juízo assentado e condições de trabalhar na publicação. Ele deixou tudo pronto, faltando somente as capas, organizadas por mim a partir de desenhos dele. Tudo foi feito por mim, Ricardo Gouveia de Melo e Carlos Newton Jr., então saiu exatamente como a gente queria, sem nenhuma mudança”, conta Dantas Suassuna.

Além de atuar nos bastidores da publicação, o pintor dá nome a dois personagens do novo livro: Manoel Dantas Suassuna e Manoel Jaúna.
Este último é descrito como discípulo do narrador – o próprio Ariano – e recebe a tarefa de construir a “Ilumiara Jaúna”. Para além da literatura, a missão já está sendo levada a cabo pelo filho: trata-se de uma enorme escultura feita em pedra na cidade de Taperoá, inspirada na Pedra do Ingá, também na Paraíba. No livro, a ilumiara (neologismo criado por Suassuna) se soma a outras quatro: Zumbi (em Olinda), Pedra do Reino (São João do Belmonte), Coroada (a própria casa onde Ariano morava, no Poço da Panela) e Acauã (fazenda da família Suassuna na Paraíba). “O próximo passo é promover um roteiro geográfico e literário para Ariano, visitar todos esses lugares, organizar apresentações culturais, peças de teatro. É algo já encaminhado”, revela Dantas Suassuna.

ENTREVISTA
“Ariano foi um artista revolucionário”

Carlos Newton Júnior / pesquisador especialista na obra de Ariano Suassuna e professor da UFPE

Ex-aluno e amigo de Ariano Suassuna ao longo de quase três décadas, o pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco Carlos Newton Júnior exerceu tarefa curiosa no longo processo de burilamento de Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores. Nos últimos sete anos da vida do autor paraibano, ele foi responsável por digitar as muitas páginas escritas a mão por Ariano e dar conta das inúmeras alterações na obra. Com a morte de Suassuna, em 2014, ele assumiu a coordenação editorial do livro e, portanto, participou ativamente das decisões relacionadas à forma final tomada pelos dois volumes da obra. Enquanto acadêmico, Carlos Newton Júnior também é especialista no universo armorial de Ariano, assunto explorado por ele como tema de mestrado e doutorado.

O romance revisita toda a obra de Ariano e tem forte caráter autobiográfico. Que reminiscências da própria vida Ariano deixa no livro?
Várias reminiscências, tanto da vida mais estritamente pessoal quanto da chamada “vida literária”. No primeiro caso, lembranças da sua infância em Taperoá e sobretudo da grande tragédia que marcou toda a sua vida e repercutiu profundamente em sua obra, ou seja, o assassinato do seu pai, João Suassuna, quando Ariano contava apenas três anos de idade, isso antes mesmo da mudança de sua família, então chefiada por sua mãe, dona Ritinha, para Taperoá.
No tocante à vida literária, personagens de peças e romances anteriores reaparecem ao longo do livro, e críticos que se dedicaram à obra de Ariano são transfigurados em personagens. Trata-se de uma autobiografia poética, na qual tudo é transfigurado pelo espelho da arte. O próprio Dom Pantero, enquanto personagem, surge da atuação de Ariano nas suas aulas-espetáculo. Ariano fez de si próprio experimento para seu personagem. Antero Savedra (o Dom Pantero) é considerado mentiroso e megalomaníaco por seus adversários do Recife porque cita vários artigos de críticos que elogiaram as obras dos seus irmãos, o romancista Auro Schabino, autor do romance A pedra do reino, e o dramaturgo Adriel Soares, autor da peça Auto d’A Misericordiosa. Os artigos teriam sido publicados em pequenos jornais do interior do Nordeste. Quem for procurar vai encontrar esses textos, que tratam da obra do próprio Ariano, em jornais do Rio ou de São Paulo, quando não em livros publicados no Brasil e mesmo no exterior. Dou apenas um exemplo: o crítico Gabriel Schabino Ferro, que aparece no romance, é, na verdade, o ensaísta português António Quadros (cujo nome completo era António Gabriel de Quadros Ferro), e o texto citado no romance, que teria sido publicado no jornal O Monitor, de Garanhuns, encontra-se num livro de António Quadros publicado em Portugal. É uma resposta bem humorada que Ariano dá aos “equivocados” do Recife.

Ariano trabalhou no romance por 33 anos e, conforme você diz no prefácio, o livro teria crescido bastante se não fossem os problemas de saúde enfrentados por ele. Pode-se dizer que, em alguma medida, é uma obra inacabada? 
Quanto ao tempo de escritura do romance, engloba um período que vai desde as primeiras notas até a redação do romance propriamente dito, e é preciso lembrar que Ariano não se dedicou exclusivamente ao romance ao longo desse tempo. Os álbuns de iluminogravuras, por exemplo, que ele lançou na década de 1980, eram experiências para o Dom Pantero. O mesmo pode-se dizer da peça As conchambranças de Quaderna, em que Quaderna, o narrador de A pedra do reino, é levado ao palco. Por outro lado, desde A pedra do reino Ariano brinca com essa história de obra inacabada. A certa altura de seu depoimento ao juiz corregedor, o personagem Quaderna lembra a tradição dos romances epopeicos que ficaram incompletos, citando como exemplo O sertanejo, de José de Alencar. Nesse sentido, A ilumiara, a obra que Dom Pantero pretende escrever, fica, de fato, inacabada. Dom Pantero é um escritor frustrado que pretende escrever uma grande obra, da mesma forma que Quaderna sonhava escrever a “obra da raça brasileira”. Mas, no caso do Romance de Dom Pantero, não podemos falar, rigorosamente, em obra inacabada, pois Ariano colocou o ponto final no livro. Ele pode não ter escrito tudo o que queria, mas, sentindo-se sem forças, concluiu o romance, cujo final, aliás, é belíssimo, mencionando o desejo de Dom Pantero de morrer no palco, ministrando uma de suas “aulas-espetaculosas”.

O livro tem estilo bem particular no que diz respeito ao uso de maiúsculas e de hífens, que você chama de “pantérico”, em referência ao protagonista. Que funções esse modo de escrever exerce na narrativa e qual a importância dele?
Na verdade, é o próprio Dom Pantero quem menciona o processo “pantérico” de escrever, para se referir ao seu estilo. A escrita de Dom Pantero pretende ser não apenas poética, no sentido usual da palavra, mas resultante da fusão de vários gêneros literários. Se, num verso, não estranhamos uma determinada palavra com inicial maiúscula, por que deveríamos estranhar num romance que pretende fundir a prosa com a poesia? Creio ainda que os hífens e as maiúsculas têm uma importância visual no conjunto, além de outros significados, que poderão ser identificados pelos leitores. A autobiografia é também chamada de “musical”, como se vê logo na folha de abertura do livro. Ora, sendo assim, explica-se por que todos os nomes de instrumentos musicais vêm grafados com iniciais maiúsculas.

Que impacto a publicação do livro deve ter na maneira como a obra de Ariano Suassuna é percebida, sobretudo por parte da academia? 
Do ponto de vista estético, Ariano foi um artista revolucionário. Não se acomodou em uma fórmula ou uma receita, como outros autores que, não obstante, construíram obras monumentais. Quando percebeu que não tinha mais o que dizer no campo específico do teatro, tendo revolucionado o panorama da moderna dramaturgia brasileira, partiu para o romance. Experimentou sempre. José Cândido de Carvalho, autor de O coronel e o lobisomem, e que foi amigo e grande admirador de Suassuna, foi o primeiro a perceber que A pedra do reino era um romance à frente do seu tempo, afirmando que o livro seria mais novo no ano 2000 do que na época em que foi publicado, em 1971. Que dizer então de Dom Pantero, fruto da fusão de vários gêneros artísticos, sobretudo literários – poesia, romance, teatro, carta, autobiografia, ensaio etc? Tenho dito, em várias ocasiões, que Dom Pantero é o romance mais pós-moderno da nossa literatura, um romance que se vale, para completar a narrativa, de imagens e até da internet. Que impacto isso causará na academia? Talvez o de um tsunami.

Além de volumoso, o livro é de leitura difícil, em especial por parte de quem não é iniciado na obra de Ariano. Há um caminho a ser percorrido entre as obras do autor para enfim estar preparado para este romance?
Sem dúvida. O Dom Pantero é um romance para iniciados, sobretudo pelas referências intertextuais e intratextuais de que o autor se vale para compor a narrativa. O próprio narrador começa dizendo que A pedra do reino serve de introdução ao romance. Costumo dizer que o rico universo criado por Ariano tem várias portas de acesso. Para o leitor mais inexperiente eu recomendaria começar pelas peças de teatro, por comédias como Auto da Compadecida, A pena e a lei e Farsa da boa preguiça. Há ainda dois romances de Ariano que podem ser usados como introdução a seu universo, dois romances bastante acessíveis ao público jovem. Um deles é A história do amor de Fernando e Isaura. O outro é O sedutor do Sertão, um romance da década de 1960 e ainda hoje inédito. Como a Nova Fronteira pretende publicar toda a obra de Ariano, é provável que O sedutor do Sertão seja editado no ano que vem.

Qual a importância de levar a público essas obras inéditas? Ariano tinha o desejo de lançá-las?
Penso que nenhum escritor escreve para si mesmo. O desejo de lançar é permanente. Ariano sentia prazer em escrever. Escrever era a sua missão, sua vocação e sua festa, como ele próprio dizia. Por outro lado, ele sabia que a essência de sua obra era feita de futuro. Por isso não gostava de bater na porta dos editores. A pedra do reino ficou mais de 20 anos fora de catálogo justamente por causa disso. No tempo em que a editora José Olympio passava por dificuldades econômicas, Ariano estava mais interessado em escrever o Dom Pantero do que em procurar nova editora para A pedra do reino. Existem peças importantes de Ariano, anteriores a Auto da Compadecida, que precisam vir a público, a exemplo de Auto de João da Cruz. No campo do romance, além de O sedutor do sertão, é preciso reeditar o primeiro livro de O rei degolado, Ao Sol da onça Caetana, bem como publicar o segundo livro, As infâncias de Quaderna, este com uma boa fixação de texto, uma vez que só saiu em folhetins do Diário de Pernambuco, e isso na década de 1970, quando os erros tipográficos eram muito frequentes em jornal. Sem contar, ainda em relação às Infâncias, que Ariano mexeu muito no texto, ou seja, é preciso fazer todas as alterações que ele deixou em manuscrito. Há ainda poemas, ensaios, textos críticos etc., de maneira que muitos livros deverão vir a público nos próximos anos.

ROMANCE DE DOM PANTERO NO PALCO DOS PECADORES
De Ariano Suassuna
Nova Fronteira
1.012 páginas
R$ 189,90
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