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Estado de Minas

'A cultura é o espírito de um país', adverte Fernanda Torres ao lançar seu novo romance

'A glória e seu cortejo de horrores' aborda a perda da relevância da arte diante das mudanças da sociedade brasileira


19/12/2017 08:26 - atualizado 19/12/2017 08:30

Atriz e também autora, com sua escrita inconfundível ela remonta panorama das artes e das coxias.
Atriz e também autora, com sua escrita inconfundível ela remonta panorama das artes e das coxias. (foto: Bob Wolfenson/Divulgação)

Na juventude, Fernanda Torres se encantou por Gustave Flaubert (1821-1880). “Fui marcada pela acidez dele, pelo pessimismo, pelo interesse no erro e no equívoco da humanidade”, diz. Dona de sarcasmo e ironia, a atriz e escritora lança seu segundo romance, A glória e seu cortejo de horrores, depois de estrear no gênero com Fim, ambos pela Companhia das Letras. Fernanda é autora também de Sete anos, livro de crônicas. Em A glória..., ela conta a história de Mario Cardoso, ator que passa pela TV, cinema e teatro no Rio de Janeiro, na década de 1960. Com escrita inconfundível, Fernanda remonta não só ao panorama das artes e das coxias, que conhece desde a infância, pois é filha dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, como também traça um retrato da cultura brasileira.Nesta entrevista, a atriz e escritora fala do horror à palavra celebridade, lamenta a vilanização das religiões africanas e pondera sobre  miscigenação. “É preciso uma radicalização violenta para voltarmos a nos enxergar como sincréticos e miscigenados, características fundadoras do Brasil”, afirma.


A glória e seu cortejo de horrores é o seu segundo romance e terceiro livro. Como você caracteriza este momento de sua escrita?
Venci barreira complicada, que é a de dar conta de um segundo romance depois de um primeiro bem recebido. Demorei muito até ordenar as ideias, escrevi pulado, um capítulo aqui, outro ali, antes mesmo de o personagem se definir ator. Foi um processo muito diferente do Fim, que me veio de enfiada, que se escreveu quase por si só. Olho o Glória..., o Fim, e penso no que falta aos dois, no que gostaria de lidar para frente, no que me serviria de companhia, porque os livros se fazem no tempo, e você só conta com uma certa intuição. O Cristovão Tezza diz que os livros são intrusos, eles se metem em você, insistem em surgir, e é preciso humildade, calma e paciência para que eles saiam, se formem, sem afobação.

 

Como a narrativa estabelece uma relação entre a arte e a história do Brasil?

Foi quase um efeito colateral do Glória.... Queria falar sobre a potência que o teatro teve, e que não tem mais, de formador de opinião, de agente de transformação na sociedade. Vivi isso, a revolução que foi a aparição do Asdrúbal, do Macunaíma do Antunes, a chegada do Gerald Thomas. E sempre lamentei não ter visto O rei da vela, Galileu Galilei, tudo o que o Zé Celso produziu quando eu usava fralda. Queria fazer essa retrospectiva, entender, através do Mario, em que momento a arte perdeu essa potência. Conforme escrevia, as descrições do que estava em volta do personagem, o bairro populoso que se formou no entorno da cabeceira da pista do aeroporto de Congonhas. A transformação do subúrbio carioca, a evangelização do Brasil, a revolução da internet, o hedonismo que se seguiu à abertura política pós-ditadura, tudo isso veio a reboque. Percebi que havia contado a história das transformações sociais, políticas e econômicas que haviam transcorrido no Brasil nas últimas quatro décadas. Não há país independente da sua cultura, que é o espírito de um país.

Você apresenta a história de Mario Cardoso, um jovem aspirante a ator no Rio de Janeiro. Em que medida sua proximidade com o palco e a televisão, desde a infância, ajudou na ambientação do romance?
Por ser filha dos meus pais e ter convivido com gerações anteriores à minha, tenho uma memória estendida do teatro, que vai de Dulcina, de Procópio, até Paulo Gustavo. É claro que, no Glória..., estava falando de algo próximo a mim, de fatos que testemunhei, mas também de uma memória que herdei, por via oral, de atores com quem convivi, em especial do Sérgio Britto. Ele pontua o livro todo, o Sérgio fez o Lear do primeiro capítulo, fez teatro com Vitor Garcia, fez Tango, com Renata Sorrah, ele está muito presente no livro. Mas hoje, quando penso no quanto o Glória... está ligado, ou não, à minha experiência, concluo que o Fim é tão autobiográfico quanto esse.

Desde cedo, você lida com o reconhecimento, tanto seu como de seus pais. Quando escolhe a frase de sua mãe para o subtítulo – A glória e seu cortejo de horrores –, é uma crítica ao universo da fama?
Ignoro o processo da fama e do sucesso quando escrevo, atuo. Não penso nisso, penso no ofício mesmo, no fazer. Celebridade é a palavra que mais desprezo em todo o universo das palavras. Tenho horror dessa palavra, do vazio que ela representa. Um artista não é uma celebridade, ele é um artista, não é a fama que o move, mas algo muito mais profundo. O que move um artista é a necessidade de se expressar, de traduzir o mundo, de se comunicar, de chegar ao outro. A frase não diz respeito à fama, mas à pressão que se segue a uma grande realização. Existe uma ansiedade imensa na vida pública, na exposição, na expressão, que nada tem a ver com ficar famoso, ter sucesso, é de outra natureza.

Como foi construir narrador masculino, Mario, de 60 anos?

Costumo dizer que não tenho lugar da fala, tenho lugar do falo, e de falos sexagenários, o que é um pouco estranho. O Mario veio assim, nasceu homem e maduro, nem pensei. Meu editor na época, o Flávio Moura, leu um capítulo e me escreveu: outro homem... interessante. Só então percebi que havia escrito outro homem, isso nem me pareceu relevante, quando apontei o capítulo da Tijuca. Acho que é mais fácil me travestir, me afastar de mim na pele de um homem, me ajuda a chegar na literatura, a não ser confessional. Eu sou muito sarcástica quando escrevo, muito irônica, e, talvez, me sinta mais livre de ser assim com um homem do que com uma mulher. As mulheres estão passando por um momento de afirmação, é uma hora importante, e ser ácida com uma mulher poderia ser problemático. O homem branco, hoje, é o genérico do humano equivocado, o que me atrai. É um bom desafio futuro escrever uma mulher que não sou eu. Quem sabe chego lá.

Estamos passando por um momento de volta à censura às artes no Brasil. Há a ascensão do conservadorismo. Você sempre foi uma voz pela liberdade de costumes e pensamento. O que pode ser feito para evitar retrocessos?
Cresci num país miscigenado e sincrético, isso não define mais o Brasil. Estamos passando por um processo de evangelização, de radicalização de discursos – à direita e à esquerda. Existe uma corrente puritana, vinda dos americanos do Norte, que está se tornando uma realidade aqui. Discute-se a fronteira entre o flerte e o assédio; deu-se um basta ao paraíso miscigenado, que até ontem definia o Brasil, chegou-se à conclusão pertinente de que esse paraíso servia para esconder o racismo. Existe avanço e retrocesso, tudo junto, ao mesmo tempo. Nunca vivi algo assim, não tenho resposta, o Brasil é muito diferente, hoje, do que achei que seria na minha juventude. Talvez seja preciso uma radicalização violenta para voltarmos a nos enxergar como sincréticos e miscigenados, características fundadoras do Brasil. Mas não há garantia, estamos em pleno mar.

Você se abriu ao diálogo em decorrência de um artigo sobre feminismo que publicou no jornal Folha de S.Paulo e causou muita polêmica. Como vê as reivindicações de grupos identitários?
O feminismo, para mim, era algo conquistado. Vim de uma família com mulheres empoderadas, atrizes, mães de santo, matriarcas. Jamais me senti acuada, com medo ou obrigada a aceitar a aproximação de um homem. Mas o feminismo, hoje, é solidário. Ele não trata apenas de um nicho, Zona Sul, de mulheres livres para ir e vir. Ele deseja mudar os paradigmas de uma sociedade que mata mulheres a três por quatro, que bate, assedia, acua. Não é hora de falar da exceção, isso foi o que de mais claro me ficou daquele episódio. Fui apresentada, ali, ao novo feminismo, engajado, que deseja promover mudanças gerais e irrestritas em todas as camadas sociais, nas empresas, na legislação, na política.

 

 

A GLÓRIA E SEU CORTEJO DE HORRORES
• De Fernanda Torres
• Companhia das Letras
• 216 páginas
• R$ 44,90 e R$ 29,90 (e-book)


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