Em livro, filósofo analisa a relação entre lutas identitárias e linchamentos públicos

A vítima tem sempre razão?, de Francisco Bosco, propõe uma reflexão sobre esse espaço e seu impacto na sociedade

Nahima Maciel

- Foto: Bruno Veiga/divulgação


O que o clipe de Mallu Magalhães, o caso do turbante de Thauane Cordeiro, as marchinhas de carnaval e o episódio da cantora baiana Marcia Castro têm em comum? Todos ganharam enorme repercussão graças ao que o filósofo Francisco Bosco chama de “novo espaço público brasileiro”. E todos representam uma nova maneira de lidar com as lutas identitárias. Bosco escreveu o livro A vítima tem sempre razão? (Todavia) para propor uma reflexão sobre esse espaço e seu impacto na sociedade.

São nove ensaios sobre casos que mobilizaram e polarizaram as redes sociais, envolvendo racismo, machismo e assédio. O autor propõe um olhar ancorado no debate. As redes sociais democratizaram a discussão, mas também trouxeram para o palco os radicalismos, que, por sua vez, podem levar a linchamentos públicos e colocar um véu sobre as lutas identitárias.

As marchinhas tradicionais que transformaram o carnaval de 2017 em arena de conflitos por causa de mensagens racistas e machistas são o primeiro embate do filósofo. Ele descarta a ideia de censura, mas aponta a reprodução do preconceito ao longo de décadas. No caso do turbante usado pela moça branca, acusada de se apropriar indevidamente de um símbolo dos negros, diz que a apropriação cultural de símbolos importantes para minorias acabam por render lucros para a maioria opressora e por perpetuar desigualdades.

Outro ensaio analisa o caso da cantora e compositora Mallu Magalhães, acusada de sexualizar e objetificar corpos de bailarinos negros, além de colocá-los atrás das grades no cenário do clipe Você não presta. O tema assédio ganhou mais atenção em textos sobre linchamentos públicos ocorridos recentemente.
Em todos, Bosco questiona a afirmação repetida por alguns grupos feministas defensores da ideia de que a vítima tem sempre razão. Cultura do machismo, cultura do estupro e feminismo radical passam pelo crivo do filósofo em um texto que pode incomodar setores militantes, mas acrescenta, sobretudo, o questionamento quanto às convicções totalitárias que pautam os debates nas redes. São perspectivas que ajudam a pensar e a abrir a discussão.

Outro caso analisado é o da cantora baiana Marcia Castro, tachada de “fiel defensora de estupradores” depois de postar uma foto acompanhada de comentário elogioso ao músico Fael Primeiro, acusado de abuso sexual. Bosco destrincha afirmações como “todo homem é um potencial violador” e “não se duvida da palavra da vítima” para falar de uma dinâmica que avalia como contraproducente para as lutas identitárias.

Ciente de que algumas de suas colocações podem gerar polêmica, o autor explica, logo na introdução, que o livro procura identificar e pesar argumentos de perspectivas divergentes. As dimensões crítica e teórica guiam os ensaios, mas Bosco sabe também que fala de uma posição “de fora” – homem, branco, hétero, classe média alta – inserido em uma estrutura de poder. E avisa: “Em que pesem dissensos pontuais, a perspectiva teórica, crítica e política deste livro é a de reconhecimento fundamental da legitimidade e da relevância dos movimentos sociais identitários, dos quais, portanto, me considero um aliado no sentido mais amplo e decisivo”



A VÍTIMA TEM SEMPRE RAZÃO?
>> De Francisco Bosco
>> Edições Ideal
>> 206 páginas
>> R$ 49,90

ENTREVISTA

Por que é necessário falar do novo espaço público brasileiro e das novas formas de confronto?

Porque o Brasil está se transformando e é preciso compreender quais são os sentidos em jogo nessa mudança a fim de que as pessoas possam ter mais recursos para se posicionar. A combinação de junho de 2013, o colapso do lulismo e a expansão das redes digitais produziu alterações importantes na experiência social do país. A autoimagem cultural ligada ao encontro, à cordialidade e à festa foi largamente abandonada. A sociedade se tornou indócil. O novo espaço público é mais intenso e democrático – as redes digitais são ferramentas de autocomunicação –, porém mais polarizado e irrefletido.

Como o título engloba todas as questões discutidas no livro?
A crítica que faço às lutas identitárias, fundamentalmente justas, incide no que chamo de suas “convocações totalizantes”. Ou seja, os apelos por posicionamentos incondicionais, e por isso mesmo dogmáticos e autoritários. Essas convocações totalizantes se traduzem em premissas como “a vítima tem sempre razão”, “é preciso ter solidariedade incondicional”, etc. Que esse tipo de convocação, que traz um evidente potencial de injustiça – deve-se apoiar uma mulher diante do que quer que ela faça, pelo fato de ela ser mulher? –, seja aceito, isso se deve a que as identificações grupais são muito compensadoras para o narcisismo do sujeito.

Todos do grupo se apoiam e se aprovam. Pertencer a um grupo fortalece psicologicamente, atenua a angústia e ainda organiza politicamente. Isso tudo é ótimo, desde que, para não interromper esse circuito de vantagens, as pessoas não se permitam gozar perversamente. E contudo isso tem acontecido. Entre tantos casos de denúncias justas contra homens, pois tratam mesmo de opressões de indivíduos contra mulheres, há diversos casos de denúncias evidentemente inconsistentes –analiso alguns no livro –, mas que se transformam em linchamentos por causa das tais convocações totalizantes, que não permitem que se instaure qualquer dissenso, qualquer dúvida.

Os linchamentos, lacrações, escrachos digitais são mais comuns no Brasil? Ou essa é uma característica universal das redes digitais?
O principal fator são as redes digitais. Elas propiciam identificação grupal em larga escala, convidam a comportamentos menos refletidos que miméticos e são um meio altamente narcísico. Diferentemente do espaço público tradicional, que é mais impessoal, nas redes digitais cada sujeito fala com um conjunto de outros sujeitos, todos com foto e perfil próprios. Ora, não é preciso ter estudado Lacan para suspeitar da relação entre narcisismo e agressividade. Além disso, há, claro, o fato de o Brasil ser um país profundamente injusto, tanto na distribuição econômica quanto na distribuição do reconhecimento. É uma sociedade largamente racista, machista e LGBTfóbica.
A revolta que isso produz tenta transformar a sociedade de diversas maneiras – e isso deve ser fundamentalmente apoiado. Mas nem todas as maneiras são justas e produtoras de bons resultados.

O lugar da fala é um tema muito discutido nas lutas identitárias: não se pode falar de machismo se você não é mulher, não se pode falar de racismo se você não é negro… Como se posicionar diante dessas posturas sem inviabilizar o diálogo e o debate?
Lugar de fala é uma espécie de conceito-moeda. Ele tem duas faces. A primeira é correta e urgente: defende que a vivência concreta da subalternidade dá acesso a dimensões dos conflitos sociais que a abordagem teórica não é capaz de ver. Por isso é imprescindível que o debate sobre os conflitos sociais incorpore essas vozes que têm vivência. Em sua outra face, porém, a ideia de lugar de fala é convocada para desqualificar a participação no debate da parte de qualquer um que não tenha essa vivência. A premissa alegada é a de que a intervenção de um tal sujeito só poderia reproduzir os interesses de sua estrutura de origem. Assim, brancos são necessariamente interessados em perpetuar o racismo; homens, em perpetuar o machismo; e assim por diante. Há nisso, para começar, uma leitura muito rasa do que é o interesse de um sujeito. E, mais fundamentalmente, há a anulação do que Kant designa como a própria vida moral do sujeito, que é a sua capacidade de, pelo menos em parte, transcender o seu interesse imediato e particular. Em suma, trata-se de expulsar a solidariedade da experiência social.

“Uma das consequências mais importantes da emergência do novo espaço público foi o questionamento do papel da grande imprensa”, diz o livro. Você tem observado alternativas consistentes e sérias à grande imprensa no Brasil?
Penso que o único diagnóstico claro, a essa altura, é o de que as redes digitais não são a solução para o problema da necessidade de democratizar a informação no Brasil. Elas produzem novos problemas, tão graves quanto os anteriores.

Desigualdade social versus reconhecimento identitário. Qual é o lugar de cada um? Um se submete ao outro, como diz Vladimir Safatle? Estamos patinando nas lutas identitárias por não conseguirmos resolver o problema da desigualdade?
Essa relação é complexa. Em primeiro lugar, ela é de natureza complementar: o problema do reconhecimento é irredutível ao problema econômico. Basta lembrar as perseguições a homossexuais no castrismo e no stalinismo e o fato de as lideranças revolucionárias e os dirigentes dos partidos comunistas serem quase sempre homens. Mas, em segundo lugar, é bem provável que a redução da desigualdade econômica tenha impacto sobre a desigualdade de reconhecimento. Nesse sentido, é possível, por exemplo, que o racismo brasileiro seja mais efeito de séculos de escravidão, que naturalizaram, para muitos, uma subalternidade das pessoas negras, do que do sucesso, entre nós, das ideologias branqueadoras da Europa oitocentista. Em terceiro lugar, penso que a intensidade alcançada pelas lutas identitárias tem, sim, uma relação com o fato de a luta por igualdade econômica e por democratização institucional estarem completamente sequestradas, neste momento, pelo governo ilegítimo de Temer. Mas isso não retira a importância e pertinência das lutas identitárias.

O que aprendemos com os episódios das marchinhas de carnaval, do turbante e do clipe da Mallu Magalhães?
Muitas coisas. O episódio das marchinhas, por exemplo, revelou para muitos que a língua é um campo de luta política. Nela se reproduzem os preconceitos que, por sua vez, contribuem para a manutenção do status quo social. Diferentemente do que pensam os detratores do politicamente correto, creio que desnaturalizar a experiência da língua é, sim, um ato político transformador.

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