Movimento de artistas e pensadores negros se mostra como importante polo de criatividade em BH

Projeto 'segundaPreta' é espaço de encontro, reflexão, troca de experiências e afetos entre atores e atrizes negras e o público

Márcia Maria Cruz
O evento busca dar visibilidade à produção de artistas negros e refletir sobre o papel da arte no combate ao racismo. - Foto: Pablo Bernardo/Divulgação
Segunda-feira não é o dia mais querido da semana. De relegado passou a aguardado, depois que na Rua Aarão Reis, 542, no Baixo Centro, as portas se abriram para que atores e atrizes negras, de diferentes gerações, pudessem propor experimentações de linguagem e discutir o fazer artístico. De imediato, o nome segundaPreta chamou minha atenção. Pensei ser bom presságio aquele endereço ser de onde saiu o Espanca!, grupo que abre caminhos nas artes cênicas, e que nos deu Grace Passô, atriz e escritora premiada e respeitada pela dramaturgia que subverte os códigos teatrais. Fui conferir as cenas apresentadas na segunda temporada – foram três desde o início do projeto, em 20 de janeiro de 2017. O público, sempre em número maior do que os ingressos disponíveis, parecia não se importar de ser o início da semana. Casa lotada. Quem queria assistir tinha que chegar pelo menos uma hora antes para conseguir o acesso a valores populares – R$ 10 para quem mora dentro do perímetro da Avenida do Contorno e R$ 5 para quem está além dela.
No palco, cenas das mais diversas: do drama à comédia, da performance ao musical, tratando com o mesmo compromisso ético assuntos do cotidiano ou questões universais. O local virou ponto de encontro de quem quer alargar fronteiras e propor novos postulados sobre a arte negra – sejam artistas ou espectadores. Para reportar essa experiência, o Pensar convidou pessoas que compõem o grupo plural. 

UM DIÁLOGO TRANSMUTADO 
 
>> Soraya Martins, atriz, crítica de teatro e pesquisadora
 
>> Anderson Feliciano, dramaturgo, performer e pesquisador

A segundaPreta é um projeto idealizado e realizado por artistas negras e negros de Belo Horizonte, um desejo coletivo, a partir das individualidades, de se ter um espaço em que artistas possam mostrar suas artes e, também, estabelecer diálogos tensionados e críticos acerca da cena contemporânea negra. A segundaPreta, como coloca o professor e intelectual Muniz Sodré, é uma segunda de treta, não no sentido pejorativo da palavra “jeitinho”, mas no sentido de atuar com astúcia e habilidade na luta antirracista, de atuar de modo outro nas fissuras e brechas de uma sociedade que ainda tem um entendimento torto de que a produção artística negra se associa somente à religiosidade de matriz africana ou a males sociais, colocando muitos trabalhos em um lugar folclorizado e criando uma espécie de essencialismo negro. A segundaPreta vem à luz como um projeto disposto a pensar e construir espaços para novos conhecimentos e novas narrativas, falar do lugar da produção de desejos, de conceitos estéticos fluídos, de artes negras no plural, de diálogos tensionados, de retidão crítica – que traz modos e modos de se pensar e realizar arte(s) negra(s) e que se coloca, ainda, no exercício de produção de pensamento.

E por que segunda-feira? Segunda é dia de Exu. Princípio dinâmico de individualização e comunicação, a instância propulsora de interpretação. Ambivalência e multiplicidade fazem desse orixá um topos discursivo, que intervém na formulação de sentido da cultura negra. Exu é metáfora da própria encruzilhada das culturas da diáspora e, na segundaPreta, na encruzilhada de discursos que, de acordo com a poeta, pesquisadora e intelectual Leda Maria Martins, “se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos”, nós, artistas negras e negros, refletimos e bordamos outras possibilidades éticas e estéticas que, articuladas a um pensamento que ressoa a complexidade da cultura afro-brasileira, gera uma atividade de fabulação, que busca mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético.

O projeto se encaminha para a quarta temporada no início do próximo ano. Sua data de estreia foi 20 de janeiro de 2017, no Teatro Espanca!, parceiro direto de luta e ideais da segunda, e teve como homenageada a atriz Ruth de Souza, estrela do teatro negro brasileiro que fez história ao ser a primeira atriz negra a se apresentar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. De 20 de janeiro a 20 de fevereiro, durante as segundas-feiras, passaram pelo terreiro-teatro Espanca! artistas de várias gerações da cidade de Belo Horizonte, do novíssimo grupo de teatro Espaço Preto a Rui Moreira, Adyr Assumpção e Gil Amâncio.

E somos sementes! A segunda temporada, que ocorreu entre maio e junho, teve de novo diálogo entre artistas que vieram antes e artistas que vieram agora, com a força, o conhecimento e o tempo espiralar que mistura o antes, o agora, o depois e o depois ainda. Do Teatro Negro e Atitude, grupo de teatro negro histórico da cidade, passando por artistas e performances como Elisa Nunes e Sabrina Rauta, novas na cena, chegando a Ricardo Aleixo e desaguando na multiartista Zora Santos, que – entre açúcar e afeto, a beleza de uma tigresa, teatro, boate e cinema, resistência e recriação –, foi a homenageada da segunda temporada.

E somos sementes. Brotamos. A terceira temporada da segundaPreta, assim como as outras, apoderou-se dos canhões, desmontou-os peça a peça, os refez e extraiu deles a parte que nos agride.
Escolhemos elaborar as guerras, as violências e os racismos em linguagem estética. Escolhemos tecer uma contranarrativa, fazer arte e ser artista o ano todo. Maio e novembro não dão conta. Escolhemos uma tecnologia de gestão horizontal, nos aquilombamos. E Leda Maria Martins, alimentando nossas íris pretas, tecendo teoria e conhecimento junto com a nossa gente de mão colorida, foi a homenageada da edição, que ocorreu entre setembro e outubro de 2017.

MAIS QUE RESISTIR, ANUNCIAMOS E nesse sentido surge um dos aspectos fundamentais da segundaPreta, que é o diálogo que mantém com os projetos que vieram antes e, a partir daí, a necessidade de problematizarmos a invisibilidade das produções artísticas que, em sua concepção, apresentam uma estética negra. Somos artistas e espectadores e por não nos sentir contemplados nos espaços destinados às artes no geral, criamos o projeto. Assim, a segundaPreta se instaura como um novo quilombo e abre frestas para pensarmos outras possibilidades de sensibilização por e através das artes. Somos artistas e expectadores. E essa relação se confunde, na segunda, porque é forjada na e a partir de uma mesma memória traumática (que, ressignificada, se transforma em potência criadora) que nos aproxima e, ao mesmo tempo, nos distancia. É nas fissuras que nascem desse jogo de aproximação e distanciamento que surgem novas formas de estarmos negras e negros no mundo.
 
'O caminho até Mercedes', espetáculo do Grupo Emú, do Rio de Janeiro - Foto: Divulgação 
Em nosso quilombo particular, a arte assume seu papel principal na organização do sensível, estabelecendo uma nova ordem, outros discursos e a possibilidade de elaboração de uma afroperspectiva que potencialize nossas produções estéticas.

Preparando-se para sua quarta temporada, a segundaPreta se firma também como lugar de formação.
Tem sido a partir do diálogo fissurado sobre nossas estéticas que verdades e conceitos cristalizados têm tido a possibilidade de ser repensados. Ao nos repensar a todo tempo, cavamos possibilidades outras de aprofundar na reelaboração de nossas memórias traumáticas.

Nesse quilombo, a partir de uma perspectiva afetiva, a arte são pipocas: alimento sagrado, usado nos banhos de cura. São elas que, aglomeradas, secam nossas feridas e nos preparam para um “ethos decolonial, senão uma iniciativa epistêmica da produção dos desejos, uma revolução haitiana das artes” em constante transmutação.

Unidos e cientes de nossas complexidades, de passo a passo, passamos e criamos novas configurações de conhecimento e poder.
 

QUANDO EU ESTOU, EU ESTOU 

>> Aline Vila Real, produtora e integrante do grupo Espanca!

“Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época, o tempo. Sua relação com o seu território. É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível (sic) de uma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos ao território, à terra. Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho direito ao espaço que ocupo na nação. E é isso que Palmares vem revelando nesse momento. Eu tenho direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação, dentro desse nicho geográfico, dessa serra de Pernambuco. A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.”


Esse texto escrito pela historiadora e poetisa Beatriz Nascimento, em 1989, bate forte em meu peito, uma das participantes da segundaPreta – um movimento, no sentido da ação dos corpos negros quando se encontram e se identificam como potências criativas e revolucionárias, porque vivem a expansão pelo afeto, pelas narrativas comuns, pelo simbólico. A segundaPreta é um território de experimentação. Lá sentimos nossos trabalhos, nossas reflexões, nossos olhares e escutas, no encontro com o outro. O outro! Esse outro em um lugar-comum é alguém que gera conhecimento sobre nós, sobre quem somos, nossas subjetividades, nossas querências e diversidades. Esses encontros geram relações e fricções que enriquecem os processos artísticos e pessoais, fortalecem a existência, contribuem para a realização da nossa presença no tempo e no espaço. Aquilombar é preciso! E melhor, é possível!


VISLUMBRAR OUTRAS CIDADES 

>> Anderson Feliciano, dramaturgo, performer e pesquisador
 
>> Evandro Nune, ator e arte-educador

No início, éramos apenas aquelas sementes semeadas por Abdias do Nascimento, um bando de gente preta desejoso de criar um espaço em que pudéssemos apresentar nossos trabalhos artísticos e forjar um pensamento acerca de nossas poéticas, de nossas performatividades negras.

A partir da afroperspectiva de aquilombamento, como apontou Beatriz Nascimento, buscamos conscientemente organizar uma sociedade na qual podemos viver de acordo com nosso passado histórico africano/brasileiro, e, com a nossa complexa forma de ser, vamos fissurando, na tentativa de desarticular, as estruturas racistas que insistem em querer nos invisibilizar.

O “candeeiro de vovó”, que firma nossos caminhos, foi aceso, e nós, sabedores de nossa sabedoria milenar e capacidade artística, técnica e operativa, vamos novamente ocupando o centro da cena. É como nos disse Leda Maria Martins: um corpo negro, no centro da cena, é mais que cena. É uma ação política. É resistência!

Como resistência, estamos firmando um ponto de encontro dos artistas pretos da cidade: a segundaPreta. Nosso novo quilombo urbano tem reunido em suas temporadas obras de artistas que buscam espaços para experimentar suas propostas e também artistas da velha-guarda que acreditam no potencial da proposta e sabem da importância de “colar junto”. Esse encontro de gerações e propostas estéticas tem contribuído também para a fomentação do espaço reservado para os debates, que têm buscado encontrar um diálogo possível, levando em consideração a complexidade de nossas poéticas e formas de estar no mundo.

É importante dizer que nosso aquilombamento agregou outros corpos pretos. O público, além das cenas e dos debates pós-apresentação, pode ter contato com obras literárias negras produzidas no Brasil e fora dele através da Livraria Bantu; pode ter acesso a acessórios únicos e exclusivos produzidos por Zora Queiroz; ou, simplesmente, se deliciar com a gastronomia afro- mineira da Kitutu Gourmet. Antes ou entre uma cena ou outra, lemos, comemos e nos embelezamos.

Trabalhado insistentemente na elaboração de outras configurações e modos de organização e considerando sempre a importância de projetos que vieram antes, como o FAN, o Fórum: O artista na cena paralela, a Mostra Benjamin de Oliveira, a Negraria, a Encruzilhada, Rede Terreiro Contemporâneo de Dança, Polifônica Negra e também de artistas que, há tempos, vêm construindo nossos alicerces. Com as bênçãos de Exu e os ventos de Iansã, a segundaPreta, em elaboração da sua quarta temporada, ecoa como aquele Milton Nascimento em Fé cega, faca amolada e se instaura como um novo quilombo que vem reconfigurando a cartografia das artes em Belo Horizonte, possibilitando-nos vislumbrar outros belos horizontes.

ENTREMEIOS

>> Tatiana Carvalho, professora, jornalista e integrante do coletivo Elas Pretas

16 de outubro. Encerramento da terceira temporada. Diferente de outros dias, o público não saiu no intervalo. Todos os lugares possíveis estavam ocupados e era gostoso sentir aquele calor-afeto de cumplicidade preta.

Ana Martins, Michele Bernardino e Rikelle Ribeiro tinham acabado de nos dar de presente a leveza para encarar a densidade das nossas “memórias de ausências” na cena Buraco-saudade. Rapidamente, elas mesmas, com a ajuda de quem estava de pé para aplaudi-las, retiraram o cenário para dar lugar a Elas também usam black tie. Andréa Rodrigues, Gislaine Reis e Rainy Campos ajeitavam o figurino. Leonardo Brasilino se desajeitava numa cadeira com seu trombone. Ajustes no som, ajustes na luz. Ufa! Todos em posição. Andrea tomou ar para a primeira frase. Lira Ribas pediu mais um tempinho.

Na dilatação desse entreato, o meu esperado passo de plateia em direção ao transe ficou em câmera lenta. O que separa a vida da cena se evidenciou como espaço... da vida. Naquele instante, o simbólico agenciado pelos experimentos cênicos e a potência de nossos encontros de calor-afeto aquilombado tomaram meu corpo (ou me lembraram do que deles mora em mim?). Obrigada, segundaPreta.

SOBRE OS QUE VIERAM ANTES DE NÓS 

>> Andréa Rodrigues, atriz e integrante do grupo Espaço Preto

A bênção aos mais velhos. Um dos pontos mais belos de toda a estrutura da segundaPreta está num detalhe, num ponto que, por vezes, pode passar despercebido em outras ações, mas que, na segundaPreta, esse detalhe, desde sua concepção, ganha ares de privilégio. Podemos tratar do privilégio que é termos pessoas que contribuem, abençoam e caminham nesse grande quilombo que é a segundaPreta.

Os que vieram antes de nós e tanto nos deram caminhos nos abriram e trazem sua bênção, acreditam e seguem firmes ao nosso lado: Zora Queiroz, Gil Amâncio, Ruth de Souza, Leda Maria Martins. Nomes, matrizes que nos encorajam, assistem atentamente, comentam, dão puxada de orelha quando necessário, seguram forte a mão, acalentam e marcham juntos. Ter essas figuras tão próximas mostra que a segundaPreta tem raiz, saudamos nossos ancestrais, nossos mais velhos e vamos juntos. Com a bênção dos que vieram antes de nós e com a responsabilidade de seguir um legado árduo e forte. Seguimos juntos.
 
 
A Cia. Espaço Preto apresentou a peça 'Ama', em setembro. - Foto: Divulgação EXPERIMENTAÇÃO E FABULAÇÃO

>> Encruzilhada, Texto produzido por participantes do evento, a partir do conceito de lugar de encontro e cruzamento de saberes

Já são três temporadas. Mais de 40 apresentações e debates. Dois cadernos publicados e o esforço danado para formular pensamentos que deem conta da complexidade de nossas poéticas negras.

Devagar, devagarinho, em nosso equilíbrio precário, tensionando nossas visões de mundo, bordamos outras possibilidades éticas e estéticas que, articuladas à nossa complexidade, criam espaço necessário para aquilo que Achille Mbembe chama de atividade primária de fabulação. Nas segundas-feiras, na encruzilhada de discursos, lugar de contato e contaminações, de encontro e desencontro, da mediação e da mudança, dia de Exu: princípio dinâmico de individualização e comunicação, nós nos inventando e nos construindo o tempo todo em um constante movimento.
E neste estar junto em muitos momentos usamos a forte referência do quilombo por acreditar nos fios de uma memória de luta e de criação que se atualiza e gera frutos. É por isso que, do ponto de vista da experimentação das propostas cênicas apresentadas na segundaPreta existe um ânimo que contamina quem faz e quem assiste. Esse ânimo está ligado à ideia de que podemos abrir frestas nos espaços da arte contemporânea, que frequentemente tende a desconsiderar, nos processos de criação e fruição, o que não se inscreve em padrões hegemônicos. Sair, portanto, de uma posição tradicionalmente referenciada pelo outro nas imagens e nos usos dos corpos negros e assumir a autoria nas formas de criar poéticas e de constituir um lugar de encontro é algo, para nós, artistas pretas e pretos desta cidade, de suma importância pela possibilidade de reorientar nosso criar, nosso pensar e nossas articulações.

A segundaPreta, nesse sentido, fissura, desarticula visões simplistas e reducionistas sobre nossas estéticas e, o mais importante, contribui para a ampliação das experiências de um criar-pensar nas artes negras contemporâneas, fortalecendo o desmoronamento da necessidade do “representante” e abrindo campo para problematizações sobre o que nos interessa contar, abordar, investir, atacar, valorizar, desmontar, elogiar, poetizar, memoriar e recusar. Movimentos de escolhas por narrativas, movimento de escolhas por linguagens.

Ao expandir as possibilidades de abordagem, os experimentos cênicos, peças e performances trazem questões relevantes sobre as nossas memórias traumáticas, o desejo de ser singular no coletivo, o exercício da escuta, a multiplicidade de vozes desejosas de ser verdadeiramente ouvidas, a contundência e afirmatividade dos nossos corpos, o combate ao racismo e um mundo amplo de vivências cotidianas e desejos: nosso finito-ilimitado.

Tal como um laboratório de arte e da experiência de partilha de um estar junto, com seus inevitáveis tropeços, dissensos e o reelaborar das nossas práticas, seguimos no caminho de nos abrir para a diversidade de modos de expressão que atenta para o entusiasmo em criar e apresentar para uma plateia cada vez mais ampla e diversificada. Seguindo esses passos, reconhecemos também o desejo de desmontar representações estereotipadas, refinar nossas poéticas, encontrar vozes que ainda nem sabemos possíveis e promover deslocamentos por via da arte que exponham nossas feridas, mas também nossa capacidade de dar tonalidades às coisas e fabular outras histórias.
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