Coletâneas celebram centenário de nascimento de João Saldanha

Em entrevista ao EM, André Iki Siqueira, autor da biografia e diretor do filme João Saldanha, fala sobre múltiplos aspectos desse personagem fascinante

Selecione
Severino Francisco

João Saldanha dirige a Seleção Brasileira em amistoso contra a Argentina, quando preparava o time para a Copa de 70 - Foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press

Em 1986, o Brasil venceu a Iugoslávia por 4x2, em Recife, com um show de Zico, que marcou três gols. A Voz do Brasil estava entrando no ar, e o locutor pediu a João Saldanha que fizesse um comentário de 20 segundos. Saldanha disse simplesmente: “Meus amigos, o Brasil ganhou porque nós temos Zico. Se Zico se chamasse Zicarov, ganhava a Iugoslávia”.

Bem-humorado, inteligente, culto, carismático e rápido no gatilho, Saldanha tinha talento multimídia – era bom no rádio, no papel do jornal e na tevê. Como técnico, montou o time mais espetacular do planeta na Copa de 1970, estrelado por Pelé, Tostão, Gérson, Jairzinho e Rivellino.

Desde os tempos de criança conviveu com as armas. O pai era maragato na guerra contra os chimangos.

O centenário de nascimento de João Saldanha (1917-1990) não passará em branco. Dois livros celebram a figura polêmica e carismática de um dos mais brilhantes jornalistas da história da imprensa brasileira: As 100 crônicas de João Saldanha (Livrosdefutebol.com) e Os subterrâneos do futebol (Ed. Lacre).
Em entrevista ao EM, André Iki Siqueira, autor da biografia João Saldanha, uma vida em jogo e diretor do filme João Saldanha, fala sobre múltiplos aspectos desse personagem fascinante.

O que explica um personagem tão singular quanto João Saldanha na imprensa brasileira?

João era uma pessoa formada como boneco de papel marché, com várias camadas. O pai dele era maragato e participou ativamente da guerra contra os chimangos. Conviveu com armas desde os tempos de menino, levava armas e munição para o Uruguai. Algumas pessoas dizem que ele era violento, que dava tiros. Mas ele conviveu com armas desde criança. Lutava pela paz. Depois, o João virou treinador do Botafogo, sem ganhar um centavo. Foi campeão com aquele timaço, que tinha Garrincha, Quarentinha, Nilton Santos e Didi. Além disso, jogava futebol de praia no time do Neném Prancha, com craques da importância de Heleno de Freitas.

Isso influenciou o comentarista de futebol?

Conhecia profundamente futebol desde muito novo. Quando começa a ser comentarista esportivo, revoluciona a crônica esportiva, tira o rococó da linguagem do rádio. Todo mundo passa a entender o que acontecia, usava a linguagem do povo, frases que buscava na rua. Era um cara da rua. Tinha conexão profunda com o povão, com os geraldinos das arquibancadas.
Como dizia Waldir Amaral, João era o comentarista que o Brasil consagrou. E se consagrou ainda mais depois que montou o timaço da seleção brasileira de 1970. Era multimídia, bom no rádio, na TV e no jornal. Marcou toda uma geração. Foi o craque da imprensa esportiva. E não era nada politicamente correto. Chamava Pelé carinhosamente de “crioulo”.

João Saldanha sobreviveria aos tempos de rigor do politicamente correto e de tempos virtuais?


Acho que João daria um jeito de falar o que pensa e não desfigurar os valores nos quais acreditava. Era da paz, dizia que brigava porque tinha razão. Os adversários dele enlouqueceriam se ele vivesse nos tempos do Twitter. Ele era multimídia e, com o poder de falar em rede internacional, seria dinamite pura.
Tinha um poder de síntese arrasador para o Twitter.

Como vê a imagem de violento que João Saldanha tinha?


Ele era nada violento. Pelo contrário, levou tiro no pulmão em 1947, no congresso da UNE, que afetou sua saúde para o resto da vida. Quando pegou em armas, era para se defender. Tinha senso de justiça muito forte e não levava desaforo para casa.

Como é que João conciliava o fato de ser comunista e anárquico?

João era parecido com Garrincha, ninguém segurava. Quando comecei a pesquisa para o filme e para o livro, me surpreendi. João era muito aberto, visionário e plural. Era visionário em tudo. Em 1964, as pessoas diziam que o regime de exceção dos militares terminaria rápido, e ele dizia que seria um longo e tenebroso inverno. Era altamente organizado, cumpria todas as tarefas do partido, mas era independente. Uma marca fundamental do João era a solidariedade. Quando houve o exílio, ele chegava e fazia uma vaquinha com os correspondestes estrangeiros para ajudar os exilados.

Como foi a revolução que João fez no comentário esportivo?

Ele usava termos que pegavam: zona do agrião, jogador cabeça de bagre, vida que segue. As frases dele são imbatíveis. João era muito culto, viajou o mundo inteiro, era uma homem cosmopolita e, ao mesmo tempo, da rua. Tanto dialogava com o Geraldino da geral do Maracanã quanto era amigo de Oscar Niemeyer ou do físico Mário Schemberg. Levava isso para os comentários e para as crônicas esportivas. Por isso ficou tão famoso, falava para todas as classes sociais. Era muito inteligente, era brilhante.

E como era a relação de João Saldanha com Nelson Rodrigues na crônica esportiva?

Eles eram muito amigos, embora as diferenças políticas fossem gigantescas. Trabalhavam mesa com mesa em O Globo e participavam do programa Grande resenha Facita. Divertiam-se muito, e os telespectadores também. Eram dois gênios comentando futebol. Combateu a ditadura militar, enfrentou o general Médici. Mas havia generais que idolatravam o João, admiravam a integridade e a inteligência dele.

João inventava muito?


Tereza Bulhões, uma das mulheres do João, contava que ele não mentia, fabulava. Era um contador de casos brilhante, engraçadíssimo. Às vezes, acrescentava algum detalhe para melhorar a história. Mas, durante a pesquisa para o livro e para o filme, comprovei. João passou tempos na China, foi operado por lá. Era um tempo em que o transporte era difícil, mas ele viajou por muitos países. Os amigos também aumentavam os casos dele. Nelson Rodrigues dizia que os fatos eram sempre diferentes das versões do Saldanha e completava: pior para os fatos porque as versões do João são sempre melhores.

João deixou herdeiros na crônica esportiva?

Hoje em dia você tem grandes jornalistas esportivos. Juca Kfouri seria um herdeiro ideológico. Mas é difícil comparar. Saldanha e Nelson Rodrigues eram Garrincha e Pelé. São personagens excepcionais. Não acontecem a todo momento na história. Além disso, vivemos em um tempo totalmente diferente, norteado por outros valores.

NA CARA DO GOL

Confira exemplos de frases de João Saldanha que entraram para o repertório nacional


"Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava empatado”
“Eu não brigo para ganhar; brigo porque tenho razão”
“Se concentração funcionasse, o time da penitenciária seria campeão”
“Tem gente que está ganhando em dólar, por isso dá sempre um driblinho a mais”


As 100 melhores crônicas comentadas de João Saldanha
Editora: Livrosdefutebol.com (248 págs)
Preço sugerido: R$ 50

Os subterrâneos do futebol
Autor: João Saldanha
Editora: Lacre (256 págs)
Preço sugerido: R$ 45.